Ditadura em polifonia
Coletânea apoiada na história oral põe em perspectiva narrativas sobre o regime militar
Eram três pesquisadores e um incômodo em comum: a memória hegemônica sobre a recente ditadura militar no Brasil – que opõe o Estado repressor e a sociedade, a um só tempo, vítima e resistente – nem sempre encontra respaldo na diversidade de memórias de pessoas e grupos. As lembranças de militantes, operários, militares, indígenas, estudantes não se encaixam necessariamente nessa dicotomia.
Para resolver o incômodo, Carolina Dellamore, Gabriel Amato, vinculados ao Núcleo de História Oral da UFMG, e Natália Batista, doutoranda em História Social na USP, puseram mãos à obra: leram a historiografia sobre o tema e produziram um texto motivador, levantando problemas e propondo caminhos. Reuniram pesquisadores de diferentes instituições e organizaram o livro A ditadura aconteceu aqui: a história oral e as memórias do regime militar brasileiro (Letra & Voz).
“Pretendemos conformar uma história social das memórias da ditadura por meio da história oral. A coletânea revela pesquisas maduras contadas em textos inéditos, que abordam entrevistas em grande parte também inéditas”, afirma Gabriel Amato, mestre em História e Culturas Políticas pela UFMG.
Amato é autor de um dos capítulos da primeira parte da obra, dedicada exatamente ao que os organizadores chamam de polifonia das memórias. Ele analisa uma entrevista sua com uma ex-participante do Projeto Rondon, iniciativa dos governos militares que levava estudantes universitários aos recônditos do Brasil. “Essa entrevistada é um caso típico de memória oscilante, com lembranças contraditórias. Ao mesmo tempo que exalta o movimento estudantil e deixa de lado a conexão entre o Rondon e o projeto político dos militares, ela reproduz em vários aspectos o discurso da ditadura”, diz o pesquisador.
‘Operário padrão’
O trabalho de Carolina Dellamore, por sua vez, explora o depoimento de um homem que, nos anos de chumbo, foi eleito “operário padrão” na Cidade Industrial, região metropolitana de Belo Horizonte. “Ele foi premiado porque certamente representava de maneira conveniente a harmonia entre as classes, mas participou de todas as greves no final dos anos 1970”, conta a doutoranda do programa de Pós-graduação em História. “Isso mostra que as pessoas também não viveram aquele período da mesma forma, por todo o tempo.”
Outros autores abordam entrevistas com lideranças do movimento negro, com pessoas LGBT, indígenas, mulheres da Ação Popular e integrantes do Grupo Opinião. “Uma história de memórias exclusivamente positivas é a dos moradores de agrovilas instaladas na época da construção da Transamazônica, que se sentiram beneficiados pelos militares e abandonados pelos governos que vieram depois”, comenta Gabriel Amato. Outro capítulo da primeira parte relata como a população da Serra do Caparaó, na região Sudeste, assustada com a presença de guerrilheiros, foi conquistada pelo Exército, com ações cívico-sociais.
Na segunda parte da obra, pesquisadores abordam a construção de acervos baseados nas memórias, apoiados em pesquisas com militares, presos políticos e familiares de militantes desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, que encontraram na Comissão da Verdade um espaço de escuta na busca por justiça.
Os organizadores de A ditadura aconteceu aqui destacam que a história oral é capaz de lançar outro olhar sobre temas tradicionais, como a ditadura militar. “Tem-se consolidado a convicção de que a história oral evoca não apenas as vozes do passado, mas principalmente as do presente”, diz Carolina Dellamore. Para Gabriel Amato, as memórias dialogam com o tempo de hoje, em que a política e as conversas cotidianas acionam lembranças e opiniões sobre a ditadura. “Nosso papel, como historiadores, é historicizar as memórias”, completa.
Livro: A ditadura aconteceu aqui: a história oral e as memórias do regime militar brasileiro
Organizadores: Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natália Batista
Editora Letra & Voz
Lançamento em 27 de setembro, às 10h, no hall do CAD 2, campus Pampulha, e 29 de setembro, às 18h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274)
280 páginas / R$ 28,50 (na pré-venda e no lançamento do dia 27)