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Nº 20 - Ano 12 - 20.04.2013

Uma cadeia para a inovação

Uma universidade dentro da universidade?

Concebidas para reunir várias faculdades que se encontravam isoladas e para contribuir para a instalação e a autonomia do conhecimento técnico e científico em nosso país – sobretudo a partir das áreas de Medicina, Engenharia e Direito –, as universidades brasileiras entraram no século 21 pressionadas por várias mudanças. Essas pressões, de origem interna e externa, levam-nas a questionar radicalmente seu papel, seus objetivos, seus métodos e a organização do ensino, da pesquisa e do conhecimento por elas promovidos. Situação equivalente pode ser entrevista também em universidades estrangeiras diante das novas configurações da geopolítica, da economia, da educação e da cultura em tempos de mercado global, de crise das antigas hegemonias, de surgimento de novos protagonistas na cena mundial, de novas tecnologias, de problemas e soluções em escalas e desafios inéditos.

A universidade é um dos locais simbólicos da cultura moderna, tal como o foram a ágora e o mercado. Elas nascem no Ocidente no século 12 (Bolonha, em 1188, seguida de Paris, Oxford, Cambridge e Salamanca) juntamente com o ressurgimento das cidades. Essa contemporaneidade não é gratuita: ambas são locais do diálogo e da troca de saberes, experiências, culturas, memórias e invenções. Assim sendo, elas trazem, desde a sua origem, a propensão para inovar e mudar. Mas a razão da existência das cidades e das universidades está também no fato de elas articularem os saberes, as experiências, as culturas e as invenções frente a acervo e tradição comuns, frente aos conhecimentos herdados aos quais aplicam uma ordenação e um juízo crítico e frente a ideias marcadas pela universalidade e pela perenidade. Elas são, portanto, o local onde se desenvolve o jogo entre a mudança e a permanência, entre a inovação e a tradição, entre o presente e a história, entre o que somos, o que fomos e o que deveríamos ser.

As universidades brasileiras são recentes e ainda não há uma cultura solidamente instalada, o que as torna mais suscetíveis às pressões do momento e das contingências. Creio que ainda estamos a construir uma ideia de universidade entre nós. Neste momento, esse processo tem de se haver com a incipiente noção de autonomia, com a absurda desigualdade socioeconômica que vem desde os tempos de colonização, com uma globalização feroz que tende a homogeneizar a cultura e a orientar toda a produção do conhecimento para o mercado global e com uma “tecnicalização” de todas as dimensões da vida, desde o pensamento e a linguagem até os valores morais e éticos, a política, os costumes, a saúde do corpo e da alma, a amizade e o amor. Também as universidades não ficam infensas à contemporaneidade “líquida”, como diz Zigmunt Bauman, e têm de lidar com ela, até mesmo para resistir à liquidez e à metamorfose incessantes implementadas em nossas vidas, em nossas instituições e em nossas identidades.

Certezas suspensas

A universidade foi objeto de uma ampliação vertiginosa das vagas oferecidas. Pressões sociais, econômicas e partidárias afetaram o seu cerne, o seu ethos e os seus estatutos e fizeram dela um órgão auditado permanentemente e quase sem autonomia. As instituições foram paralisadas muitas vezes pela necessidade de se adequarem a procedimentos que lhe eram pouco familiares e mesmo incompatíveis com sua estrutura e história, o que tornou descontínuo o debate sobre suas funções, sobre a produção e a organização dos saberes e sobre sua relação com a sociedade civil, com sua história e com o seu futuro. A própria construção da ideia de universidade foi relegada ao segundo plano ou obrigada a responder apenas a demandas imediatas e contingenciais rapidamente substituídas por outras. Isso, diga-se de passagem, coincide com um quadro de “desinvenção” da pólis e da cidade como local dos diálogos e das trocas sobre os quais se constrói uma res publica. Encontramo-nos numa situação em que as antigas certezas parecem suspensas e as futuras ainda não se deram a ver com nitidez.

O que pretendemos aqui é apenas disponibilizar alguns insumos para tratar o terreno onde as universidades, no tempo oportuno, deverão florescer. Esse tratamento já tem sido providenciado em diversas atividades e instâncias, através de seminários, encontros, discussões e fóruns em vários níveis e amplitudes. Cumpre fazer o balanço dos aportes fornecidos nessas ocasiões e verificar o que nos parece válido ou não como ponto de partida. Cumpre também revisitar a fundação, a ideia e a história das universidades, uma vez que caminhar para o futuro requer sempre, e simultaneamente, caminhar em direção às origens. Essas origens e essa história não são definitivas e são sempre reelaboradas conforme o futuro que pretendemos edificar. Mas é importante estabelecer os diálogos entre os dois polos de modo a firmarmos a consciência sobre os nossos rumos e nossas decisões, bem como sobre os critérios que validam e justificam as posições assumidas. Além disso, é preciso cotejar as várias posições em curso e fazer o balanço delas.

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Desirée Cunha Rodrigues

Recentemente, assistimos a exposições sobre o Processo de Bolonha e a implementação na Universidade Federal da Bahia de um bacharelado interdisciplinar que se coaduna com as propostas emanadas daquele processo e implantadas em várias universidades europeias. Em tais proposições, um conhecimento genérico precede a especialização ou mesmo conflita-se com ela. Essa estratégia tem validade, se bem conduzida, mas outras possibilidades também merecem ser avaliadas. Por exemplo, a filosofia do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG, ambiente de pesquisa e não de ensino, supera esse conflito ao fundar-se na noção de que o transdisciplinar deve ser construído na “profundidade”, e não na “superfície” do conhecimento. Isso requer dominar preliminarmente uma área mais específica, de modo a ser capaz de tocar os seus desafios e problemas, os quais só poderão ser resolvidos pela interação com outro campo. Daí a propriedade do prefixo “trans”: ele abriga um “contágio” que está aquém, além e através das disciplinas e das especialidades. Debater isso melhor é essencial para estruturar os currículos de graduação, a relação entre graduação e pós-graduação e a organização de nossos vários institutos e colegiados. Seria importante avaliar se há universidades em que a ênfase no “trans” seria mais apropriadamente situada nos últimos dois anos da graduação. Outra possibilidade, a qual me parece conceitualmente mais correta, é fazer essa interação com outros campos do conhecimento ocorrer durante todos os anos da graduação de forma equilibrada com a formação específica. Observam-se, ainda, nas proposições de Bolonha e da UFBA grande abertura e amplo leque disciplinar disponibilizado para os estudantes. Isso é louvável, mas exige grande esforço para administrar vagas nas disciplinas por parte dos colegiados e um meticuloso trabalho de tutoria que requer tempo, dedicação e cuidados nem sempre possíveis diante do tarefismo que absorve a maioria dos docentes e os diversos setores das universidades. Há outro aspecto que talvez seja problemático, sobretudo em se tratando de jovens inseguros e indecisos quanto ao rumo a dar a suas próprias vidas. Definir por um curso ou profissão é decisão que geralmente temos de tomar de forma muito prematura. Isso favorece a ideia de a universidade oferecer ao aluno um período inicial de maior maturação e menos especialização. Durante esse período, seria possível um melhor contato com os vários campos do conhecimento e atividades de forma a permitir maior segurança naquela decisão. Contudo, a amplidão desse leque pode frustrar o jovem na medida em que ele está justamente numa fase em que precisa ser orientado para encontrar seu caminho. É preciso saber compor e proporcionar os ingredientes para que o cardápio oferecido tenha uma identidade e um foco que muitas vezes faltam nas universidades, sobretudo em períodos de incertezas. Sem isso, a universidade nada mais faz do que reproduzir a fragmentação geral da vida contemporânea, em vez de oferecer alternativas a ela.

Falta de nitidez

Gostaria ainda de levantar dois problemas. O primeiro é o quão frágil é a cultura universitária diante da política partidária, a qual muitas vezes não se coaduna com a política acadêmica e impede a construção de sua autonomia. Lembro-me da exitosa resistência de universidades a essa ingerência contingente, como a de Oxford diante das pressões de Henrique VIII. Em nome da destruição de um hipotético muro entre a sociedade civil e a universidade, costumamos perder a nitidez do território e da competência específica desta, a qual se vê reduzida a uma entidade “extensionista” e assistencialista e sujeita a grupos de interesses restritos e contingentes, mais do que republicanos e de longo prazo. Não há dúvida que a universidade brasileira deve oferecer extensão e assistência social, e creio que, ao menos no caso da UFMG, ela já o faz e muito bem. Cito apenas um dado. A Universidade realiza um milhão de consultas médicas por ano, o que significa atender 400 mil pessoas (três a quatro consultas por pessoa). Mas isso, a meu juízo, não constitui sua centralidade e o seu fim.

Tenho minhas dúvidas a respeito do sistema de cotas implantado através de lei recente aprovada pelo Congresso brasileiro, mas parece difícil reverter as novas disposições definidas pelo Congresso. Creio que o melhor, nesse momento, é identificarmos o novo perfil que a universidade assumirá e tentarmos construir, dentro dela, locais e instâncias voltadas para a pesquisa e para a construção de um conhecimento transdisciplinar e avançado, mesmo que isso não interesse ao mercado.

Aponto outro problema sobre o caminho recentemente definido para as universidades. Tal caminho imagina ser possível a elas compensar a deficiência do ensino público médio e fundamental em nosso país. Falso: a graduação do ensino superior não compensa essa deficiência nem pode ser vista como upgrade do ensino fundamental e médio. Se esse ensino de base não for sólido e acessível gratuitamente a todos, creio que dificilmente poderemos ter uma universidade dedicada a cumprir com êxito a função que lhe compete. Criar uma universidade dentro da universidade e reaver a ideia que lhe deu origem requer resolver o gargalo crucial para o desenvolvimento de nosso país: a má qualidade de nosso ensino fundamental e médio. Parece-me um enorme desvio do seu papel a universidade dedicar-se a ensinar, escrever, ler e interpretar textos e providenciar uma cultura geral básica que seria de responsabilidade de instâncias outras. A falta de clareza do que seja a universidade e do ensino que lhe é próprio é uma das razões que a levaram a deixar de lado a graduação e a medir a excelência mais pelo número de artigos, quase nunca lidos, do que pelo ensino e pela formação ministrada.

As faculdades e universidades particulares têm como objetivos centrais o lucro e o fornecimento de mão de obra para o mercado profissional. Não há maiores problemas nisso, a não ser a mercantilização extensiva e intensiva de todas as dimensões de nossa vida, inclusive a educação, promovida por um capital cada vez mais voraz que não hesita, sob diversos argumentos, a fazer da formação do ser humano e da sociedade uma mercadoria como qualquer outra. Creio que a tarefa de instalar uma competência técnica nacional nas mais diversas áreas já foi, em grande parte, cumprida pelas universidades públicas. Tal tarefa me parece passível de ser continuada pelas universidades particulares, desde que se insiram num projeto conveniente ao interesse público e que tenham a qualidade requerida para tanto. Nesse novo contexto, cabe às universidades públicas brasileiras encontrar um papel diferenciado em relação às demais e concentrar-se justamente naquilo que é de ponta, naquilo que pouco ou nada interessa ao mercado profissional e às empresas particulares e naquilo que é relevante para o mundo público, para o bem comum e para a edificação de uma res publica e de uma nação entre nós.

Cumpre também repensar a universidade a partir de uma necessária valorização das escolas e institutos técnicos. Tais escolas e institutos bem como seus diplomas parecem-me marginalizados em um sistema educacional em que só o diploma universitário merece reconhecimento, mesmo que obtido em instituições de qualidade duvidosa. Creio que isso se deve, entre outras razões, a um preconceito histórico quanto às profissões e formações estritamente técnicas. Contudo, essa formação é tão imprescindível e relevante quanto as ministradas pelas universidades, sobretudo numa época comandada pela tecnologia e pelos seus avanços. Tais escolas técnicas podem atingir patamares de qualidade e relevância semelhantes aos que exigimos de nossas universidades. Apenas cumprem um papel diferente.

Creio que só se pode definir o papel das universidades dentro de um “organismo” no qual elas têm uma função bem determinada e definida diante do ensino médio e fundamental, diante das instituições particulares, diante de outros institutos de formação técnica e superior e mesmo diante de ateliês, oficinas, estúdios, laboratórios e outros locais onde também se forma e se educa, como no caso das artes e da produção cinematográfica, com competência e dinamismo difíceis de serem providenciados pelas universidades. Um organismo não é uma rede ou rizoma composto de nós amorfos e iguais entre si. Numa estrutura orgânica, cada órgão tem uma função que lhe cabe e que é insubstituível para manter bem vivo o todo no qual se insere e ao qual serve, bem como os outros órgãos diante dos quais ele reconhece sua vocação, seu sentido e seu perfil. Pensar a universidade requer, portanto, defini-la dentro de um organismo composto de outras instituições e em vários níveis. O mesmo critério pode ser transportado para se pensar especificamente as várias universidades públicas de nosso país e definir o que é comum a todas elas e o perfil, a vocação e o sentido próprio a cada uma.

Centros de excelência

A sua situação dentro do referido organismo favorece a ideia de uma universidade pública voltada para a pesquisa integrada com o ensino e para a formação do cidadão e do caráter, desenvolvendo a concepção de W. Humboldt para a Universidade de Berlim. A política brasileira, a julgar pelas últimas diretrizes, pende para a criação de uma universidade de massa como meio de tentar enfrentar o déficit educacional da nação. Essa estratégia pode ser válida, mas julgamos que ao lado disso, ou melhor, dentro disso, há lugar para desenvolvermos “centros de excelência” orientados para a integração do ensino com a pesquisa, para a formação do caráter e do cidadão dedicado às questões relativas ao interesse público e ao bem comum, para o conhecimento avançado e para o que não é voltado imediatamente para atender ao mundo técnico e profissional presente. Esses centros internos de cada universidade abrigariam docentes, pesquisadores e discentes selecionados mediante projetos que poderiam ter como critério a sua relevância pública e o seu caráter avançado e transdisciplinar, por exemplo. Trata-se aí de estabelecer uma universidade sobre o alicerce da cultura e da res publica, e não apenas sobre o universo da técnica e do mercado. Definir esse foco e esse alicerce parece-me mais salutar do que procurar atender a tantas missões que afogam a universidade pública, tornam caótica a sua organização e confundem as suas metas, que ficam sempre a mercê de pressões exógenas contingentes.

“Centros ou universidades de excelência” são geralmente considerados antipáticos ao projeto de universidade inclusiva ou de massa. A oposição entre uma universidade de excelência ou de vanguarda e uma universidade de massa ou inclusiva remete à oposição entre uma cultura dita erudita e acadêmica e outra dita popular ou de massa. Tais oposições me parecem falazes e devem ser vencidas. Creio ser possível a convivência e o contágio entre esses polos aparentes por meio de um olhar que os atravesse e recombine, como ao conferir formas novas e de vanguarda a conteúdos tradicionais ou de massa e, ao contrário, mostrando como novos conteúdos podem ser ligados ou aderidos a formas tradicionais e comuns. Temos de reconhecer a existência de vários estratos de cultura, de tempo e de realidades, os quais devem ser identificados, analisados e recombinados no cosmo inédito oferecido pelo conhecimento desenvolvido pelas universidades. Assim, a “aventura do conhecimento” possibilita a emergência de descobertas e de um novo olhar sobre as velhas coisas existentes. Esse é o trabalho de reinvenção do mundo e do ser humano a ser conduzido por uma universidade prospectiva, inventiva e capaz até mesmo de contrariar o senso comum, a mediania das opiniões e os dogmas que aceitamos sem perceber. Assim como a universidade não é um upgrade do ensino médio, o conhecimento científico não emana naturalmente do senso comum, do mercado profissional e do avanço tecnológico. O que agrada a este senso comum, a este mercado ou à massa não é necessariamente o que convém à universidade pública.

Provado e saboreado

Justamente por ser pública, essa universidade deve cultivar conhecimentos e pesquisas em áreas de saber nas quais o lucro, as empresas particulares e o mercado de mão de obra não têm interesse. Em um mundo pressionado por rankings, por número de patentes, por eventos e por burocracias irrelevantes, esquecemos esse papel essencial que as universidades públicas devem exercer. Se elas não o exercerem, nenhuma outra instituição o fará. Caberia a elas, por exemplo, ensinar a consertar órgãos do século 18, ministrar cursos de luteria, restaurar partituras do barroco mineiro e refletir sobre o pensamento científico em Alberti e Leonardo até ver em que medida ele poderia gerar uma nova física das qualidades e da geometria em lugar da algébrica física das quantidades da ciência moderna. A universidade é o lugar onde o conhecimento não deve ser simplesmente reproduzido, mas transformado, provado e saboreado. Esse é um dos modos de ela realizar a sua potencialidade emancipatória. Esse modo se contrapõe às forças marcadamente utilitaristas e mercadológicas que a pressionam externa e internamente, seja pensando-a como uma entidade de negócios, seja reduzindo-a ao atendimento das demandas de massa, do consumo e das opiniões pré-fabricadas, como pela mídia. Numa universidade submetida a essas forças, o conhecimento não palpita mais. Ele torna-se apenas mensagem e informação e não uma construção, uma invenção, uma aventura através da qual desvelamos nossas potencialidades, estabelecemos diálogos e história novas e reinventamos, cotidianamente, o mundo e nós mesmos.

Para criar uma universidade dentro da universidade, cumpre verificar em que medida somos capazes de fazer dela, neste momento, agora, um espaço para o conhecimento aventurar-se e para que dela saiamos não apenas mais informados, mas transformados, comovidos e distintos da massa de consumidores até mesmo da ciência, do conhecimento, da arte e da cultura. Consumir a cultura, a ciência, a arte e o conhecimento ou acessar as informações e as novidades tecnológicas mais recentes não contribui para nos tornar cultos, sábios e bons homens públicos. Para isso, é preciso fazer a mudança equilibrar-se com a permanência e o contingente com o universal. Nosso tempo é de crise dos universais. Sem esses universais, a universidade não tem como existir. 

Criar uma universidade dentro da universidade é cultivar o terreno onde esses universais podem vir a florescer e a pautar nossos pensamentos, nossas ações, nossas relações e nossa educação. E isso não é para ser feito amanhã ou depois, mas já, apesar do mercado, da burocracia, do tarefismo, do utilitarismo, da fragmentação e da liquidez que assolam todas as dimensões de nossa vida individual e pública.

Carlos Antônio Leite Brandão