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Nº 18 - Ano 9 - 05.08.2010

Web e redes sociais

Na idade das trevas digitais

Pesquisadores temem pelo futuro do registro de informações na era virtual

A maioria das bibliotecas estava em chamas. Poucos registros sobraram. Aquilo que ficou passou a ser reproduzido pelos monges copistas. Era a única forma de preservar a história daquele povo. Talvez nunca tenha se produzido tanto conhecimento que, graças à dominação bárbara, foi, em grande parte, destruído. Como se não bastasse, faltava papel para fazer as cópias dos livros que restaram; os monges selecionaram apenas o que era pertinente para a época: mais história se perdeu. 

Para alguns estudiosos, essa cena, ocorrida após a invasão do Império Romano pelos bárbaros, por volta dos séculos 6 e 7 d.C., guarda alguma semelhança com a imagem que a sociedade contemporânea deixará para o futuro. A idade das trevas pode ser comparada com o que o cientista de computadores Danny Hillis, já em 1996, chamou de “a era negra digital”. Para estudiosos como Hillis, os registros modernos, cada vez mais produzidos em meio digital, podem instantaneamente desaparecer. Isso devido à complexidade de um ambiente formado por hardwares e softwares que se transformam tão rapidamente que, no futuro, poderão ser mais difíceis de ler do que os antigos hieróglifos.

Imagem para revista Diversa nº 18 - Ano 9 - agosto 2010
Imagem para revista Diversa nº 18 - Ano 9 - agosto 2010 Lidiane Cordeiro Praes

Previsões apocalípticas à parte, o fato é que várias informações já foram perdidas num passado de, no máximo, 30 anos de utilização de meios digitais. Um exemplo aconteceu em 2001, quando o cientista Joseph Miller pediu à Nasa dados coletados pela sonda Viking em Marte nos anos 70. A Nasa achou as fitas, mas as informações não puderam ser abertas, já que o software que as lia não existia mais e, de acordo com Miller, os técnicos que conheciam o formato estavam todos mortos.

Outro exemplo foi o censo dos Estados Unidos de 1930, processado nos primeiros computadores existentes.  Recentemente, ele precisou ser acessado, mas existiam apenas dois computadores no mundo capazes de ler o material, e que tiveram que ser reformados.

Futurologia    Contudo, tentar prever os formatos que permanecerão é um grande exercício de futurologia. Uma das preocupações dos profissionais da informação é fazer essa conversão prospectiva, o que significa transpor tudo para o formato atual antes que o

conteúdo não possa mais ser lido. A grande questão é descobrir quais mídias sobreviverão e por quanto tempo. De acordo com o pesquisador da Escola de Ciência da Informação da UFMG Renato Rocha, as bibliotecas que digitalizaram informações em CD previam durabilidade de 100 anos, mas isso não se confirmou, já que, com 10 anos, o CD não pode mais ser lido. “Temos que tomar decisões que podem se revelar erradas. Podemos acompanhar tendências de tecnologia, memórias em estado sólido, memórias flash, por exemplo. É um exercício de futurologia e prevenção”, afirma. 

É claro que nem todos os registros históricos são produzidos em meio digital, mas cada vez mais a sociedade disponibiliza informações sobre o seu patrimônio histórico-cultural na internet. Segundo Renato Rocha, o mundo produz três mil livros impressos todo dia e atualiza um trilhão de páginas na internet. A cada minuto são feitos uploads de 24 horas de vídeo no YouTube. O americano, por exemplo, consome 34 gigabytes de informação diária.  

Infinitude  Para alguns estudiosos da informação, não cabe à nossa sociedade selecionar aquilo que deve ser preservado. Nesse sentido, algumas ferramentas foram criadas para que toda a produção na internet possa ser armazenada. É o caso do Internet Archive, criado para impedir que os conteúdos da rede mundial desapareçam. Essa ferramenta surgiu em 1996 em San Francisco e hoje armazena textos, áudios, imagens em movimento e softwares. São mais de 100 terabytes de memória com capacidade quase infinita de armazenamento. Como uma biblioteca de papel, ele fornece acesso livre para pesquisadores, historiadores, acadêmicos e público em geral. De acordo com o professor Marcello Bax, da Escola de Ciência da Informação da UFMG, o futuro do armazenamento digital é a própria infinitude. Isso porque o custo do byte tem caído a cada dia. 

O Internet Archive age como um mecanismo de busca que caminha pelas páginas rastreando e armazenando todas as atualizações. Além disso, ele analisa sintaticamente as páginas da internet que são armazenadas para especificar o conteúdo e depois indexá-las corretamente. A partir daí, é feita uma codificação dos dados para ver se o arquivo pode ser comprimido.  

“Há 10 anos, o meu site dava uma ideia visual muito próxima dos padrões de apresentação dos sites daquele período, que são muito diferentes de hoje. Fico com a nítida impressão de estar voltando ao passado."

Por meio de uma das ferramentas do Internet Archive, a Way Back Machine, é possível visualizar toda atualização e o conteúdo de qualquer página em qualquer período. “Há 10 anos, o meu site dava uma ideia visual muito próxima dos padrões de apresentação dos sites daquele período, que são muito diferentes de hoje. Fico com a nítida impressão de estar voltando ao passado. Visualmente eu tenho objetos que representam uma determinada era”, comenta Bax.

Outra preocupação da ferramenta é com a preservação do material. Para lidar com a obsolescência dos formatos, o Internet Archive coleta e armazena exemplares de softwares para que todas as extensões existentes possam ser interpretadas. Além disso, os criadores dessa ferramenta mantêm várias cópias dos discos de armazenamento espalhadas por diversos países para evitar que esse material se perca em função de alguma catástrofe natural. 

Mas se tudo o que é produzido está sendo armazenado, como será possível produzir conhecimento com essa infinidade de informações? O grande problema é que, enquanto as informações se multiplicam, a nossa capacidade de consumo continua a mesma. “É possível dar sentido a tudo isso? Se há um número limitado de fontes, tem-se um panorama, mesmo enviesado, de tendências e fatos. Quando se é bombardeado em diversas mídias com uma quantidade de informação impossível de ser tratada intelectualmente, fica difícil construir esse panorama sobre a nossa sociedade”, questiona Renato Rocha. 

Rede de lembranças

Mais do que discutir a vulnerabilidade dos suportes digitais, é preciso pensar novas formas de produção de memória social com a internet. Geralmente, essas discussões têm se concentrado na questão do patrimônio, ou seja, nos vestígios materiais em produção. Mas toda a imaterialidade da produção cultural da sociedade contemporânea não pode ser desconsiderada quando se fala da memória, ou daquilo que permanecerá como imagem ou leitura de nossa sociedade. 

De acordo com o pesquisador em comunicação Renné França, a transformação da relação do homem com o tempo mudou as formas de memória.  “Se antes podíamos pensar na memória como fixa, bem delimitada e fortemente ligada à identidade nacional e pessoal, hoje, na era da instantaneidade, é cada vez mais difícil conceber a memória como algo fixo e completo: ela surge fragmentada, difusa, muitas vezes contraditória”, explica. 

Além disso, no ciberespaço as narrativas individuais têm assumido grande importância, já que se manifestam nas redes sociais, blogs e outras ferramentas de relacionamento virtual. “As pessoas querem deixar vestígios e restos da sua experiência pessoal. Essa é a grande mudança operada pela criação de sites, museus de narrativas, depoimentos, posts nas redes sociais, blogs. Todos esses movimentos nos indicam que o desejo de memória é um traço da sociedade contemporânea”, explica a professora Vera Dodebei, do Programa de Pós-graduação em Memória Social, Memória Virtual e Patrimônio Digital da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). 

Diante dessa intensa produção de relatos individuais, nem tudo se consolida como memória. Se no passado instituições como Estado, Igreja e museus eram os principais selecionadores dessa memória, com a internet nunca o indivíduo teve tanta oportunidade de fazer parte dessa construção. Quando disponibilizados na grande rede, esses registros logo são incorporados pela coletividade, deixando de ser apenas relatos individuais. “A informação posta na rede rapidamente se  ‘separa’ da fonte original e passa a compor o todo. A internet funciona como um gigantesco banco de dados de lembranças, e o sujeito comum está apto a abastecer essa memória a partir das informações que disponibiliza”, afirma Renné. 

Vera Dodebei, no entanto, não acredita que a internet substituirá as instituições na construção da memória. Para ela, o ambiente virtual é outro espaço de manifestação social que não elimina as instituições com suas regras, mas quebra essa hegemonia. “É outro caminho para construir uma memória menos representada e mais criativa. Com ela, as pessoas se sentem construtoras de uma nova memória e não apenas consumidoras de uma memória criada por regras institucionais”, completa.

O que ficará?  Nesse universo quase infinito de relatos, fica a grande questão sobre o que permanece como memória social. De acordo com a professora da Escola de Ciência da Informação e coordenadora do Programa de Inclusão Digital da UFMG, Maria Aparecida Moura, a maioria desses relatos individuais não é incorporada à memória da sociedade. “Facebook, Orkut, Twitter associados aos blogs permitirão o registro das memórias, mas elas tendem a ficar apenas potencializadas”, explica. A biblioteca do Congresso americano, lembra ela, está armazenando todo o material do Twitter, cerca de 50 milhões de mensagens por mês. Mas para alcançar o status de memória e ganhar a posteridade, esses registros terão que passar pelo crivo, leitura e olhar dos pesquisadores e editores do futuro.  

Pâmilla Vilas Boas Costa Ribeiro