Institucional

AGU pede a desembargador para revisar decisão que negou recurso contra a Stock Car

Até o momento, os organizadores não apresentaram proposta de mitigação sonora; especialistas avaliam que medidas são ineficazes, e patrimônio ambiental e científico da UFMG está ameaçado

Cavalo residente no Hospital Veterinário
Cavalo residente no Hospital Veterinário, que deverá suspender atendimentos e cirurgias durante o período de realização da provaFoto: Vitória Brunini | UFMG

A Advocacia Geral da União (AGU) ingressou, na última sexta-feira, dia 26, com um recurso junto ao desembargador federal Lincoln Rodrigues de Faria em que pede a revisão da decisão que indeferiu o pedido de antecipação de tutela recursal para que os organizadores da Stock Car suspendam todos os atos preparatórios, no entorno do campus Pampulha, destinados à realização da corrida automobilística prevista para o período de 15 a 18 de agosto. O recurso foi interposto pelo procurador Rafael Pinheiro Dantas.

Na decisão tomada na última quarta-feira, dia 24, Rodrigues de Faria, que é vinculado ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região, negou o primeiro pedido de antecipação de tutela recursal feito pela UFMG e manteve a realização da prova no local e no período programados. No entanto, ressalvou que “a parte recorrente [a Universidade] pode reiterar a tutela liminar em ação civil pública a partir de eventuais novos elementos que evidenciem a probabilidade do direito, que corroborem a insuficiência técnica das medidas de mitigação de ruídos apresentadas pelas empresas organizadoras do evento esportivo, ora agravadas”.

Em despacho anterior, datado de 12 de julho, a juíza Adriane Luísa Vieira Trindade, da 1ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte, havia determinado que os organizadores da prova da Stock Car apresentassem em 10 dias uma proposta de mitigação dos impactos acústicos da corrida. De acordo com a decisão, o documento deveria conter  “detalhamento de suficiência técnica” que demonstrasse viabilidade de implantação das medidas nos pontos de impacto biologicamente sensíveis da UFMG, como o Hospital Veterinário, o Biotério Central e a Estação Ecológica, o que até o momento não ocorreu.

A sentença de Adriane Trindade responde a uma ação civil pública ajuizada no início do mês pelo Ministério Público Federal, por meio do procurador Carlos Bruno Ferreira da Silva, e a outra de mesma natureza interposta pela UFMG. Ao avaliar as provas levantadas pelo MPF, a magistrada reconhece que a realização da corrida nas imediações do campus Pampulha tem potencial para causar danos ao patrimônio ambiental e científico da Universidade e salienta que o limite de ruídos em estabelecimentos hospitalares, como o Hospital Veterinário, é de 55 decibéis.

Camundongo no biotério da UFMG
Camundongo no biotério da UFMG: animais não suportarão o barulho e a vibração provocados pelos motores dos carros da Stock CarFoto: Foca Lisboa I UFMG

Sem garantia técnica
Como nenhuma proposta de mitigação dos efeitos foi apresentada até o momento, a UFMG reiterou o seu pedido na Justiça Federal. O recurso interposto na última sexta-feira parte da constatação de que não há “nenhuma garantia técnica capaz de concluir, acima de qualquer dúvida razoável, que o evento não trará prejuízos a pessoas e animais nos prédios adjacentes da UFMG, utilizados como clínica, consultório, hospital e escola, nem mesmo que a poluição sonora a ser produzida esteja adequada aos limites definidos na legislação municipal que rege o assunto. Configura-se, isso sim, o claro perigo de que danos de fato ocorram se o evento não for impedido de acontecer às portas da Instituição”.

O Hospital Veterinário e o Biotério Central, que abrigam animais usados em várias atividades acadêmicos, estão entre os mais ameaçados pela prova. O Hospital, segundo sua direção, deverá deixar de atender cerca de 3 mil cães e gatos e 20 equinos durante os 19 dias previstos para montagem da estrutura e realização da etapa da Stock Car em Belo Horizonte – além disso, as cirurgias e internações deverão ser suspensas.

Não menos dramática é a situação do Biotério Central, que produz ratos e camundongos usados em estudos científicos conduzidos por cerca de 100 pesquisadores da UFMG vinculados a 27 programas de pós-graduação, além de fornecer animais para outras instituições de pesquisa. De acordo com a professora Adriana Abalen, coordenadora do Biotério, os animais que vivem no espaço não suportarão o barulho e a vibração provocados pelos motores dos carros da Stock Car. Ratos e camundongos aguentam até 70 decibéis sem estresse, e a prova gera cerca de 110 decibéis. “O nível de estresse será tão insuportável para ratos e camundongos, que eles poderão cometer atos de canibalismo, eliminando uns aos outros e interrompendo várias pesquisas em andamento”, alertou a professora.

A certeza de que as medidas mitigadoras são insuficientes é atestada por duas notas técnicas sobre o impacto acústico da prova elaboradas no âmbito do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais (CAU-MG).

Victor Mourthé Valadares, nos estúdios da Rádio UFMG Educativa
Victor Mourthé Valadares, nos estúdios da Rádio UFMG Educativa: atenuação máxima das barreiras acústicas não alcança mais do que 50% do valor necessário para se enquadrar nos limites permitidos em área hospitalarFoto: Rádio UFMG Educativa

'Impraticável'
Em uma delas, o professor Victor Mourthé Valadares, pesquisador do Laboratório de Conforto Ambiental da Escola de Arquitetura da UFMG, afirma que, para alcançar os níveis aceitáveis de barulho previstos pela legislação municipal – 55 decibéis – para áreas hospitalares, a atenuação mínima necessária seria de 32 decibéis, e a máxima, de 52 decibéis. “Em termos práticos, esse valor mínimo não pode ser mitigado por barreiras acústicas”, sustenta o professor na nota técnica. Ele explica que a frequência mais importante de atenuação de barreira para ruído de veículos é em 1000 Hz. “Nessa frequência, a atenuação necessária será de 52 decibéis, o dobro do que uma barreira acústica pode alcançar. Com uma eventual barreira implantada nas condições básicas de exequibilidade presente, os níveis sonoros ficarão no mínimo, nessa situação mais crítica, a mais de 20 decibéis do permitido”, calcula o professor.

Na última quinta-feira, 25, Victor Mourthé esteve no estúdio da Rádio UFMG Educativa, onde participou do programa Expresso 104,5. Na entrevista, ele confirmou que é “quase impraticável” atenuar cerca de 50 decibéis. “Existe um limite técnico de atuação das barreiras e, na melhor das hipóteses, teremos atenuações em torno de 25 decibéis, ou seja, 50% do que a gente precisa”, avaliou o professor. Para ele, a população da capital mineira precisa se mobilizar contra a corrida. “As pessoas sensibilizadas com essa causa devem fazer uma reflexão sobre a pertinência do projeto da Stock Car BH. A prova está chegando, e a gente precisa mesmo de um posicionamento mais efetivo da sociedade”, defendeu Mourthé.

Ouça a entrevista completa

Em outra análise, o CEA-MG debruçou-se sobre o relatório técnico apresentado, em março de 2024, pela Stock Car, contendo estudo para avaliação da instalação de barreira acústica para proteção de edifícios da UFMG sensíveis a ruídos. O estudo da Stock Car baseava-se numa pretensa emissão de 85 decibéis e propunha a criação de uma barreira acústica com altura de 3,5 a 7m. A proposta também indicava outras intervenções, como a instalação de janelas, portas, vidros e difusores acústicos para atenuar o impacto sonoro nas edificações da UFMG próximas ao circuito.

Baseado em monitoramento feito em etapa da Stock Car em Cascavel (PR), a nota técnica, assinada pela arquiteta urbanista Danielly Borges Garcia Macedo, avalia que os níveis sonoros da fonte apresentados pela empresa contratada pelos organizadores foram subestimados – 85 decibéis – frente à média de 100,8 decibéis efetivamente apurada durante a corrida a uma distância de 20 a 45 metros da pista.

Mestra e doutora em Engenharia de Estruturas, com expertise em acústica de edificações e avaliação de ciclo de vida, Danielly Macedo também é cética em relação à eficácia das barreiras acústicas. No seu parecer técnico, ela explica que esses elementos de fechamento vertical buscam atenuar a passagem das ondas sonoras e possibilitam sua propagação pela difração acima da superfície vedada. No entanto, sua capacidade de amenizar o barulho se limita de 10 a 15 decibéis, enquanto seria necessário que a redução fosse de ao menos 40 decibéis para se alcançar os níveis máximos tolerados em ambulatórios e hospitais.

Conselho Universitário quer reparação e ressarcimento
O Conselho Universitário também se manifestou sobre a inviabilidade das soluções acústicas aventadas até o momento. Com base em parecer de sua Comissão Permanente de Obras e Patrimônio, o órgão máximo de deliberação da UFMG avaliou, em decisão tomada no dia 11 de julho, que o "poder público não tem sido capaz de monitorar e coibir eficientemente eventos esportivos autorizados, que resultaram fora dos limites legais". 

Na manifestação, o Conselho recomenda que a UFMG "tome todas as medidas a seu alcance para documentar, mensurar e, sobretudo, buscar reparação/compensação pelos constrangimentos, assim como ressarcimento pelos danos, impactos e prejuízos causados tanto a seu patrimônio como a seu normal funcionamento pelo empreendimento Stock Car nas cercanias do campus Pampulha". O órgão também "autorizou, por unanimidade, que a dirigente máxima desta Instituição [a reitora Sandra Goulart Almeida] adote todas as medidas em direito admitidas junto aos órgãos dotados de competência, inclusive a juntada de provas documentais pertinentes, com a finalidade de demonstrar as coações perpetradas pelos organizadores do citado empreendimento em desfavor da UFMG".