António Nóvoa e Kenneth Zeichner defendem 'quebra da hierarquia' na formação de professores
Palestras dos pesquisadores António Nóvoa e Kenneth Zeichner abriram seminário internacional que prossegue nesta terça-feira no auditório da Reitoria, com transmissão pelo Canal do Ieat no YouTube

O uso de imagens ou metáforas ajuda a esclarecer conceitos teóricos que circulam nos diferentes campos de conhecimento, como o da educação. Entretanto, como tal, as metáforas comportam certo grau de incertezas – como no caso da metáfora dos "terceiros espaços", que norteia as discussões para a constituição da política institucional de formação de professores da UFMG. Segundo o pesquisador António Nóvoa, reitor emérito da Universidade de Lisboa, essa proposta de "terceiros espaços" ou de "espaços comuns" é uma imagem que não contém fronteiras ou enquadramentos institucionais definidos, "permitindo construir imaginários de um caminho no qual haja um ponto de encontro dos espaços acadêmico, escolar e profissional para formar novos docentes".
António Nóvoa está há cerca de um ano à frente da Cátedra Fundep Magda Soares de Educação Básica, do Instituto de Estudos Avançados Transdisplinares (Ieat) da UFMG, órgão responsável pelo Seminário Internacional Terceiros Espaços na Formação Docente. O evento teve início ontem, 16, e prossegue até as 20h desta terça-feira, 17, no auditório da Reitoria, com transmissão on-line. No evento, o pesquisador discorreu sobre os desafios e as possibilidades de construção desses "espaços comuns" de formação de professores. Segundo ele, apesar de também ser utilizado em outros setores, o conceito tem uma aplicação particular no âmbito da formação docente, pois "tem o propósito de gerar uma realidade na qual seja possível ultrapassar as dicotomias e a tão forte hierarquia acadêmica na formação de professores", afirmou.
Referindo-se à Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 4/2024, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para as licenciaturas, com a obrigatoriedade de 400h de estágio supervisionado e 320h de atividades de extensão nas escolas, Nóvoa sugeriu três propósitos para o início desse percurso: assegurar a participação legitimada dos professores da educação básica na socialização de seu conhecimento profissional junto aos seus futuros colegas; assegurar que o professor da escola básica seja professor-pesquisador na produção de conhecimento profissional (o que, em sua opinião, difere da mera pesquisa acadêmica); e assegurar que esses profissionais tenham voz na esfera das políticas públicas de educação.

O reitor emérito da Universidade de Lisboa também enfatizou a necessidade de esse espaço comum se constituir como “uma força de resistência às transformações que estão sendo propostas para a educação, advindas de grupos e de instituições de fora da educação, sobretudo dos oligopólios digitais”. Ele reiterou a necessária “metamorfose da educação”, conceito emprestado do pesquisador Edgar Moran, para defender uma urgente mudança educacional que seja compartilhada entre universidades e escolas de educação básica.
Reconhecendo os desafios do percurso, o catedrático enumerou condições que precisam ser asseguradas para que esse processo se concretize, como condições internas das universidades para que se respeite o campo profissional da educação básica e condições para que os professores universitários atuem diretamente nos projetos dos núcleos de estágios e nas atividades de extensão nas escolas. Quanto à participação das instituições de educação básica, Nóvoa defendeu que elas tenham condições de se responsabilizar pela formação profissional docente e que assumam uma matriz de ensaio e de experimentação como escolas transformadoras. Por fim, aos professores das escolas básicas que se engajarem nesse papel de formar outros professores, ele defendeu que seja concedido, em contrapartida, o reconhecimento por sua "auctoritas" (em seus termos, a soma de "autoridade", "autoria" e "autorização") e que sejam assegurados condições e direitos.
Formação com e para as comunidades
Também para Kenneth Zeichner, professor emérito das Universidades de Wisconsin-Madison e Washington, nos Estados Unidos, que participou do seminário por videoconferência (com tradução simultânea), “a formação de professores precisa de novas estruturas”. Com experiência de cinco décadas de estudos na área, Zeichner afirma que “os programas de formação de professores nos Estados Unidos precisam transcender os limites das universidades”. Para o especialista, as novas estruturas devem estabelecer uma responsabilidade compartilhada entre Organizações não Governamentais (Ongs), universidades, escolas e comunidades. “Não basta preparar professores, precisamos entender e atender as demandas das comunidades onde esses professores vão atuar”, ponderou.
Embora no país de Zeichner mais de 80% dos programas de formação sejam realizados por instituições públicas, ao contrário do que ocorre no Brasil (onde mais de 80% das licenciaturas são ofertadas por instituições privadas e na modalidade a distancia), o pesquisador acrescenta que “é preciso uma mudança epistemológica da atuação universitária sobre formação docente, para que as universidades tenham humildade e abertura para aprender com as comunidades e conquistem a sua confiança”. Para Zeichner, é premente o engajamento dos professores formadores na vida das comunidades. Segundo ele, “não tem como formar bons professores sem conhecer as comunidades, que devem participar de todo o processo desde o início”, defendeu.
“Nesse sentido, o que chamo de espaço híbrido é esse processo de aceitar e transmitir os conhecimentos de experiências das comunidades em que as escolas estão inseridas. Nos Estados Unidos, 80% dos professores das escolas públicas são brancos, falam apenas o inglês e a maioria é de classe média. Entretanto, nessas escolas públicas estão matriculados 84% dos alunos até 17 anos, não brancos e que falam mais de 300 idiomas. O resultado é uma alta rotatividade de professores nessas escolas e profissionais despreparados para essas realidades. Nessa perspectiva, há professores que se veem como missionários, tentando salvar os alunos de suas comunidades marginalizadas. O resultado de todos esses fatores é uma alta taxa de reprovação”, relatou.
O pesquisador americano acrescentou "que o 'profissionalismo docente' ou 'profissionalismo democrático', como defende Judyth Sachs, não se perde nessa ajuda mútua. "Eu também acredito que isso é essencial, especialmente em comunidades historicamente marginalizadas. Essa luta deve ser coletiva, como a que estamos realizando contra o regime facista nos Estados Unidos. Construir espaços híbridos não é como um filme de fantasia. Sempre haverá discordâncias e antagonismos. Trabalhar juntos e de forma colaborativa demora um tempo, até se desenvolver a confiança entre os parceiros. Mas o mais importante é encontrar padrões em comum e não deixar professores sem qualificação entrar nas comunidades. A luta faz parte do processo e não deve ser individual, e, sim, voltada para os interesses coletivos e para o bem comum”, concluiu.
O pesquisador também relatou que, com os severos cortes orçamentários para as universidades públicas, nos Estados Unidos também há escassez de professores, queda de matrícula nos programas de formação e salários mais baixos, se comparados a outros requisitos similares de ocupação profissional.
Novo mestrado profissional e redes de pesquisa
Durante a mesa de abertura do Seminário, na manhã de segunda-feira, 16, a pró-reitora de pós-graduação, Isabela Pordeus, anunciou o novo mestrado profissional em alfabetização da UFMG (ProfAlfa), aprovado na última a sexta-feira, 13 de junho. “Esse projeto de mestrado nos foi solicitado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, que revelou ter sido motivada pela experiência da UFMG na organização do ProfBio [mestrado profissional em Ciências] e pela nossa trajetória no processo de alfabetização, especificamente proposta pela professora Magda Soares”, contou. A pró-reitora reiterou o compromisso da Universidade com a “formação de recursos humanos qualificados, na perspectiva de promover a justiça social pelo empoderamento das pessoas por meio da educação”.
Por sua vez, o pró-reitor de Extensão da UFMG, Glaucinei Corrêa, destacou a participação da extensão na formação dos professores da educação básica, “não somente pela exigência normativa das DCN, mas como um componente pedagógico estruturante na formação docente, para que a universidade aprenda com a escola e com os saberes populares”. Presidida pelo coordenador da Cátedra Fundep Magda Soares de Educação Básica, professor Júlio Emílio Diniz-Pereira, a mesa de abertura contou ainda com a participação do pró-reitor de Graduação, Bruno Otávio Teixeira Soares, e da presidente do Ieat, professora Patrícia Kauark.

Durante toda a manhã de ontem, oito grupos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros apresentaram resumos de seus trabalhos, que serão debatidos em rodas de conversa na programação desta terça-feira. A programação do seminário também pode ser acompanhada pelo canal do Ieat no YouTube.