Arte e Cultura

Difusão da cultura pelas plataformas digitais deve assegurar diversidade e direitos dos artistas

No Festival de Verão, diretor da Unesco e pesquisadoras do Brasil e da Argentina abordaram as agendas nacionais e internacionais sobre direito à produção e fruição cultural

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Ana Flávia Machado (alto, à esquerda), Lia Calabre, Ernesto Ottoni e Marcela Bernardi 
Reprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

 

As plataformas digitais, controladas por algumas poucas empresas de tecnologia, ainda estão longe de remunerar de forma justa aqueles que detêm os direitos da produção artística. Essa é uma das preocupações centrais dos gestores e produtores de cultura, no Brasil e no mundo, sobretudo quando o mundo viu crescer de forma exponencial a transmissão on-line de espetáculos e toda sorte de manifestações, em razão das restrições decorrentes da pandemia de covid-19. E o setor está atento também a outro ponto: “É preciso que a difusão da arte e da cultura no ambiente virtual assegure a diversidade, sob pena de retrocedermos 30 anos de políticas culturais”, afirmou, na tarde de hoje (sexta, 5 de março), o diretor geral adjunto da Unesco, Ernesto Ottone, um dos debatedores da mesa do Festival de Verão da UFMG em que se abordou o direito à cultura nas agendas nacionais e internacionais.

Ottone, que é vinculado à Universidade do Chile, ressaltou que o direito de produzir e fruir cultura ainda esbarra, em tempos de isolamento social, no fato de que cerca de metade da população mundial não tem acesso à internet. “Tem havido avanços, mas ainda de forma muito lenta”, comentou o diretor da Unesco, acrescentando, por exemplo, que um conjunto significativo de países ainda não tem condições de oferecer acesso on-line aos acervos de seus museus.

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Ernesto Ottoni: suporte para sobrevivência de instituições de países pobresReprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

Para Ernesto Ottone, é crucial e urgente que as respostas à crise sanitária global estejam baseadas também no princípio do direito universal à cultura. “Grupos como indígenas, imigrantes, refugiados e tantos outros têm sido atingidos de forma desproporcional nesses últimos meses. É preciso um esforço de Estados e organismos multilaterais para garantir o acesso dessas pessoas a bens e serviços culturais e artísticos”, afirmou.

O diretor geral adjunto da Unesco anunciou planos da organização para combater as consequências da pandemia, como suporte para a sobrevivência de instituições culturais de países menos desenvolvidos. Segundo ele, “mais que nunca, o direito à cultura está à prova no mundo”. O diretor lembrou que a covid-19 teve “impacto devastador” sobre o patrimônio cultural e sobre as condições de subsistência de produtores e artistas. “A defesa da diversidade cultural, dos direitos humanos e a solidariedade estão no núcleo da missão da Unesco. Temos pedido aos dirigentes políticos que tenham cuidado especial com a cultura e seus trabalhadores”, afirmou.

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Lia Calabre: mobilização territorial reativadaReprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

Domesticação do pensamento
Ameaças recentes à democracia e à diversidade no campo da cultura foram motivo de alerta na fala da historiadora Lia Calabre, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa. Ela frisou que hoje, no Brasil, a postura crítica é demonizada e até criminalizada. “Há um movimento que visa à domesticação do pensamento intelectual e científico, após um período em que se caminhava para o resgate da dívida com setores que historicamente não tiveram suas vozes ouvidas e a construção de novos elos, cidadanias e representações no campo da cultura”, disse.

De acordo com Lia Calabre, nas últimas décadas, por inspiração da Constituição de 1988, houve “novas mobilizações” e uma nova ideia de ação pública, sobretudo durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003 a 2008). “As discussões foram expandidas e abriu-se espaço para direitos, protagonismos e participações diversas, também de grupos historicamente ausentes, como indígenas, ciganos e ribeirinhos.” Um dos grandes acertos dessa política, salientou a pesquisadora, foi o reconhecimento de que “cultura se faz no território”.

Em resposta a questão colocada pela mediadora da mesa, a professora Ana Flávia Machado, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, sobre o papel da Lei Aldir Blanc – criada recentemente para garantir apoio emergencial aos profissionais da cultura –, Lia Calabre concordou que, como efeito colateral, a iniciativa reacendeu a mobilização de natureza territorial, fazendo reviver o espírito dos fóruns locais e dos Pontos de Cultura. “Os autores têm se rearticulado em novas militâncias, e isso se desdobra em movimentos diversos e na retomada da discussão sobre o direito à cultura”, afirmou a professora, que está à frente do setor de políticas culturais da Casa de Rui Barbosa.

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Marcela Bernardi: "a cultura salva"Reprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

Indígenas e mulheres vítimas de violência
A professora Marcela Bernardi, da Universidade Nacional do Nordeste (UNNE), da Argentina, fez um relato de atividades que valorizam trocas socioculturais na formação universitária. Programas inserem comunidades indígenas no cotidiano da instituição e dão assistência a mulheres vítimas de violência. Um grupo interdisciplinar trabalha pela recuperação dessas mulheres por meio da expressão artística. “Elas resgatam sua condição de cidadãs e protagonizam campanhas de prevenção da violência. A cultura cura e salva”, afirmou Marcela, que integra a Comissão de Produção Artística e Cultural da Associação de Universidades Grupo Montevidéu (AUGM), da qual faz parte a UFMG.

Um projeto da UNNE que inclui os indígenas, contou a professora, busca a preservação das línguas nativas. “Uma das lições que o trabalho com essas comunidades tem nos ensinado é que muito do que pensamos ser adequado para os povos originários não interessa a eles”, comentou Marcela.

Segundo a professora e gestora de projetos de extensão, a UNNE trata as diferentes manifestações artísticas e culturais como ferramentas de educação, recreação e denúncia. “O direito pleno à cultura transforma a realidade, gera espaços de trabalho e desenvolvimento socioeconômico e valoriza a identidade das comunidades”, concluiu Marcela Bernardi.                

Itamar Rigueira Jr.