É urgente incluir as desigualdades nos indicadores educacionais
Chico Soares defende, em artigo, que medida da qualidade da educação deve considerar nível socioeconômico, pertencimento racial e gênero
O Brasil é um país profundamente desigual, inclusive na educação. O direito à educação se concretiza com a garantia de acesso a uma escola de educação básica, com a permanência regular e prolongada, e, finalmente, com o aprendizado do que é necessário para uma cidadania plena. O artigo 205 da nossa Constituição Federal define que é dever do Estado garantir isso a todos, para o que é essencial dar as condições adequadas de funcionamento às escolas.
Pesquisas acadêmicas, realizadas por vários grupos de universidades brasileiras – como o Nupede, da Faculdade de Educação da UFMG –, mostraram grandes variações entre resultados de estudantes que pertencem a diferentes grupos sociais e que frequentam escolas de condições de funcionamento distintas. A diferença de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) entre os estudantes do primeiro quintil de nível socioeconômico (NSE) e os do quinto quintil é equivalente a dois anos de escolarização. Os estudantes de NSE baixo que cursam o nono ano têm o conhecimento típico de estudantes do sétimo ano. Outra evidência da desigualdade é dada pela porcentagem de estudantes com trajetórias regulares. Em estudo recente, mostramos que esse valor é 20 pontos percentuais maior entre aqueles que se autodeclaram brancos do que entre os que se autodeclaram pretos. As exclusões e desigualdades são ainda mais contundentes quando se olha cada estudante não por uma, mas por várias de suas características sociais, como nos ensinam as pesquisas que usam abordagens interseccionais para a mensuração das desigualdades.
Por um lado, é alentador que a lei do novo Fundeb exija a inclusão das desigualdades no novo indicador, possibilitando que, nos próximos anos, a educação brasileira passe a ser monitorada de forma mais adequada. Por outro lado, qualificar e garantir que desigualdades sejam consideradas explicitamente pelo novo indicador é tarefa prioritária e ainda em construção.
Ou seja, as políticas públicas para a educação brasileira precisam ser desenhadas com base em indicadores de monitoramento da qualidade da educação que incluam, a um só tempo, o nível do aprendizado – já utilizado atualmente – e as desigualdades entre grupos de estudantes definidos por características sociodemográficas (sobretudo raça, gênero e nível socioeconômico). Atualmente, as desigualdades são ignoradas no planejamento educacional, feito sob influência do Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação. Esse indicador não possibilita a explicitação completa das desigualdades, já que, sem acesso especial aos dados, não há como calcular o seu valor para os diferentes grupos sociais. É possível, entretanto, calcular o Ideb para cada escola de uma rede e comparar os valores entre escolas de NSE similares, exercício que mostra grandes desigualdades entre as escolas.
Redefinir os indicadores de qualidade da educação é uma pauta urgente, tendo em vista que, para alocar parte dos recursos do novo Fundeb, serão usados indicadores de “eficiência” dos sistemas de ensino dos estados e municípios. Se, para isso, fosse usado apenas o atual Ideb, o incentivo financeiro serviria para que as exclusões e desigualdades comentadas acima permanecessem camufladas. Por um lado, é alentador que a lei do novo Fundeb exija a inclusão das desigualdades no novo indicador, possibilitando que, nos próximos anos, a educação brasileira passe a ser monitorada de forma mais adequada. Por outro lado, qualificar e garantir que desigualdades sejam consideradas explicitamente pelo novo indicador é tarefa prioritária e ainda em construção. Se já sabemos que nível socioeconômico, pertencimento racial e gênero condicionam o usufruto dos direitos sociais, por que não modelamos a mensuração da qualidade do sistema educacional com base em seus efeitos/resultados na promoção da equidade entre os desiguais?
A consideração explícita das desigualdades nos indicadores e a redefinição do conceito de “sucesso educacional” nos estados e municípios é um passo importante, necessário e urgente. No entanto, isso não basta. É preciso implementar iniciativas econômicas, sociais e éticas. Na realidade, o Brasil precisa mesmo é mudar a parte de sua cultura que naturalizou, ao longo de cinco séculos, desigualdades e exclusões. E essa é uma tarefa muito difícil, mas possível.