Em que mundo estamos?
Ricardo Takahashi contesta tese de que é preciso primeiro melhorar a qualidade do ensino básico para, só depois, investir na educação superior
Quando se debate o tema da educação no Brasil, é comum alguém defender uma estratégia por etapas: primeiro investir no ensino fundamental e, quando esse nível estiver bem consolidado, prosseguir para o ensino médio e só depois alcançar o ensino superior. Recentemente, vagando entre os canais de televisão, assisti, na TV Senado, à reprise de uma apresentação do ministro da Educação na Comissão de Educação do Senado. O ministro expunha exatamente esse argumento e usou uma figura de linguagem recorrente: quando se constrói uma casa, primeiro se faz a fundação, depois as paredes e, por último, o telhado.
Na linha desse argumento, o ministro disse que o Brasil fez primeiro o telhado, o que explicaria o atual déficit educacional do país. Em sua opinião, os recursos atualmente destinados ao ensino superior deveriam ser redirecionados para a educação básica, colocando-nos, assim, na trajetória dos países educacional e economicamente bem-sucedidos. O ministro citou a Coreia do Sul, que, na década de 1950, era mais pobre que o Brasil, mas que, desde então, fez grande investimento em seu sistema educacional, construído “de baixo para cima”.
Podemos verificar que, de fato, em 2007, a Coreia do Sul tinha 42% de seus jovens adultos (25 a 34 anos) apenas com ensino médio e 55% com ensino superior. Em 2017, o país passou a contar com 28% apenas com ensino médio e 70% com ensino superior. Esse exemplo parece estar de acordo com a “teoria da construção da casa” e aplica-se a um país economicamente bem-sucedido.
A ideia de desmontar as universidades até que esteja resolvido o problema da educação básica parece remeter ao mundo de uma “sociedade industrial” do início do século 20.
O Brasil, por sua vez, tinha, em 2007, 53% de seus jovens adultos sem, sequer, ensino médio, 37% apenas com ensino médio e 10% com ensino superior. Em 2017, esses números passaram a ser de 36% sem ensino médio, 47% apenas com ensino médio e 17% com ensino superior. De fato, está ocorrendo um aumento do investimento no ensino superior antes de se completar a universalização do ensino médio. O argumento da “construção da casa” poderia indicar que estaríamos cometendo um grave erro, mas recorremos a outro exemplo.
A China tem exibido grande vigor econômico nas três últimas décadas, e as projeções indicam que o tamanho de sua economia deverá ultrapassar o da economia dos Estados Unidos durante a próxima década. Mas, em 2017, a China tinha 64% de sua população de jovens adultos sem ensino médio, 18% apenas com ensino médio, enquanto os restantes 18% tinham diploma superior.
Como fica o argumento da “construção da casa”? Com uma proporção muito maior de jovens sem ensino médio em relação ao Brasil, a China tem um índice maior de pessoas com ensino superior. Apesar disso, a estratégia chinesa parece estar dando certo. Por que a lógica da sucessão de etapas de consolidação dos níveis de ensino não parece ser necessária para a China?
Para encontrar uma explicação, é preciso entender as mudanças ocorridas na dinâmica econômica no último século. Na primeira metade do século 20, o polo dinâmico da economia mundial era a chamada “indústria de base”: siderurgia, produção de máquinas e equipamentos. As nações mais bem-sucedidas tinham educado a maioria de sua população no ensino fundamental, o que possibilitava que essas pessoas trabalhassem em fábricas. Estava em curso um esforço para educar mais pessoas no ensino médio, suficiente para a formação das profissões de classe média cuja necessidade era crescente: bancários, escriturários, vendedores, entre outros. Bastava, além disso, um pequeno número de profissionais de nível superior, e o sistema da “sociedade industrial” funcionava adequadamente. Nações como Estados Unidos, Alemanha e Japão seguiram a rota de educar suas populações no nível fundamental e depois no nível médio, precisamente porque eram os países centrais naquela sociedade industrial.
Na entrada do século 21, o polo dinâmico da economia passa a ser a produção tecnológica, assentada nas tecnologias da informação e na automação, o que caracterizou a chamada “sociedade do conhecimento”. Os operários nas indústrias mais tecnificadas precisam ter educação de nível médio. Passa a ser necessário um número muito maior de profissionais de nível superior para dar suporte aos processos de criação tecnológica. Para os países que haviam sido centrais no ciclo anterior, e que já haviam universalizado a educação básica, a entrada no novo ciclo implicava apenas um esforço extra para a expansão do ensino superior.
Os dois ciclos em sequência – universalização da educação básica na sociedade industrial seguida da generalização do ensino superior na sociedade do conhecimento – dão a impressão de que se tratava de um único processo, traduzido na fórmula tão simples quanto errada do “argumento da construção da casa”.
Países de economia agrária e com grande parte da população analfabeta, como o Brasil e a China, não puderam participar do centro dinâmico da “sociedade industrial” do início do século 20. Nos dois países, o início do esforço de universalização do ensino fundamental data do fim do século passado, e esse erro continuará a custar caro aos dois, ainda por muitas décadas.
A China, no entanto, decidiu se desenvolver e assumir uma centralidade no mundo. Buscando se posicionar no contexto da “sociedade do conhecimento”, investiu pesadamente em universidades, de maneira a contar com núcleos acadêmicos de elevada qualificação nas diversas áreas do conhecimento, o que foi decisivo para se tornar a potência tecnológica que é hoje. Apresenta ainda um enorme passivo social, com contingente de pessoas sem o ensino médio, que continuará sendo preocupação por mais algumas décadas.
Não há fórmula alternativa para tratar a desigualdade estrutural que nos acomete desde sempre. No entanto, a ideia de desmontar as universidades até que esteja resolvido o problema da educação básica parece remeter ao mundo de uma “sociedade industrial” do início do século 20. Quanto ao Brasil, não há dúvida sobre a necessidade de se priorizar fortemente a educação básica. No mundo da “sociedade do conhecimento”, no qual não se ingressa sem universidades de alto padrão, essa ideia só traz a certeza de perdermos novamente o trem da história. Em que mundo estamos?
Artigo originalmente publicado no blog Ciência & Matemática, hospedado na página do jornal O Globo, e reproduzido na edição 2.069 do Boletim UFMG