Opinião

Em que mundo estamos?

Ricardo Takahashi contesta tese de que é preciso primeiro melhorar a qualidade do ensino básico para, só depois, investir na educação superior

Globo terrestre em exibição no Museu das Culturas Europeias, em Berlim, na Alemanha
Globo terrestre em exibição em museu na AlemanhaGodeNehler / CC BY-SA 4.0

Quando se debate o tema da educação no Brasil, é comum alguém defender uma estratégia por etapas: primeiro investir no ensino fundamental e, quando esse nível estiver bem consolidado, prosseguir para o ensino médio e só depois alcançar o ensino superior. Recentemente, vagando entre os canais de televisão, assisti, na TV Senado, à reprise de uma apresentação do ministro da Educação na Comissão de Educação do Senado. O ministro expunha exatamente esse argumento e usou uma figura de linguagem recorrente: quando se constrói uma casa, primeiro se faz a fundação, depois as paredes e, por último, o telhado.

Na linha desse argumento, o ministro disse que o Brasil fez primeiro o telhado, o que explicaria o atual déficit educacional do país. Em sua opinião, os recursos atualmente destinados ao ensino superior deveriam ser redirecionados para a educação básica, colocando-nos, assim, na trajetória dos países educacional e economicamente bem-sucedidos. O ministro citou a Coreia do Sul, que, na década de 1950, era mais pobre que o Brasil, mas que, desde então, fez grande investimento em seu sistema educacional, construído “de baixo para cima”.

Podemos verificar que, de fato, em 2007, a Coreia do Sul tinha 42% de seus jovens adultos (25 a 34 anos) apenas com ensino médio e 55% com ensino superior. Em 2017, o país passou a contar com 28% apenas com ensino médio e 70% com ensino superior. Esse exemplo parece estar de acordo com a “teoria da construção da casa” e aplica-se a um país economicamente bem-sucedido.

A ideia de desmontar as universidades até que esteja resolvido o problema da educação básica parece remeter ao mundo de uma “sociedade industrial” do início do século 20.

O Brasil, por sua vez, tinha, em 2007, 53% de seus jovens adultos sem, sequer, ensino médio, 37% apenas com ensino médio e 10% com ensino superior. Em 2017, esses números passaram a ser de 36% sem ensino médio, 47% apenas com ensino médio e 17% com ensino superior. De fato, está ocorrendo um aumento do investimento no ensino superior antes de se completar a universalização do ensino médio. O argumento da “construção da casa” poderia indicar que estaríamos cometendo um grave erro, mas recorremos a outro exemplo.

A China tem exibido grande vigor econômico nas três últimas décadas, e as projeções indicam que o tamanho de sua economia deverá ultrapassar o da economia dos Estados Unidos durante a próxima década. Mas, em 2017, a China tinha 64% de sua população de jovens adultos sem ensino médio, 18% apenas com ensino médio, enquanto os restantes 18% tinham diploma superior.

Ricardo Takahashi:
Takahashi: sociedade do conhecimento põe em xeque o argumento da "casa em construção"Isabella Lucas / UFMG

Como fica o argumento da “construção da casa”? Com uma proporção muito maior de jovens sem ensino médio em relação ao Brasil, a China tem um índice maior de pessoas com ensino superior. Apesar disso, a estratégia chinesa parece estar dando certo. Por que a lógica da sucessão de etapas de consolidação dos níveis de ensino não parece ser necessária para a China?

Para encontrar uma explicação, é preciso entender as mudanças ocorridas na dinâmica econômica no último século. Na primeira metade do século 20, o polo dinâmico da economia mundial era a chamada “indústria de base”: siderurgia, produção de máquinas e equipamentos. As nações mais bem-sucedidas tinham educado a maioria de sua população no ensino fundamental, o que possibilitava que essas pessoas trabalhassem em fábricas. Estava em curso um esforço para educar mais pessoas no ensino médio, suficiente para a formação das profissões de classe média cuja necessidade era crescente: bancários, escriturários, vendedores, entre outros. Bastava, além disso, um pequeno número de profissionais de nível superior, e o sistema da “sociedade industrial” funcionava adequadamente. Nações como Estados Unidos, Alemanha e Japão seguiram a rota de educar suas populações no nível fundamental e depois no nível médio, precisamente porque eram os países centrais naquela sociedade industrial.

Na entrada do século 21, o polo dinâmico da economia passa a ser a produção tecnológica, assentada nas tecnologias da informação e na automação, o que caracterizou a chamada “sociedade do conhecimento”. Os operários nas indústrias mais tecnificadas precisam ter educação de nível médio. Passa a ser necessário um número muito maior de profissionais de nível superior para dar suporte aos processos de criação tecnológica. Para os países que haviam sido centrais no ciclo anterior, e que já haviam universalizado a educação básica, a entrada no novo ciclo implicava apenas um esforço extra para a expansão do ensino superior.

Os dois ciclos em sequência – universalização da educação básica na sociedade industrial seguida da generalização do ensino superior na sociedade do conhecimento – dão a impressão de que se tratava de um único processo, traduzido na fórmula tão simples quanto errada do “argumento da construção da casa”.

Países de economia agrária e com grande parte da população analfabeta, como o Brasil e a China, não puderam participar do centro dinâmico da “sociedade industrial” do início do século 20. Nos dois países, o início do esforço de universalização do ensino fundamental data do fim do século passado, e esse erro continuará a custar caro aos dois, ainda por muitas décadas.

A China, no entanto, decidiu se desenvolver e assumir uma centralidade no mundo. Buscando se posicionar no contexto da “sociedade do conhecimento”, investiu pesadamente em universidades, de maneira a contar com núcleos acadêmicos de elevada qualificação nas diversas áreas do conhecimento, o que foi decisivo para se tornar a potência tecnológica que é hoje. Apresenta ainda um enorme passivo social, com contingente de pessoas sem o ensino médio, que continuará sendo preocupação por mais algumas décadas.

Não há fórmula alternativa para tratar a desigualdade estrutural que nos acomete desde sempre. No entanto, a ideia de desmontar as universidades até que esteja resolvido o problema da educação básica parece remeter ao mundo de uma “sociedade industrial” do início do século 20. Quanto ao Brasil, não há dúvida sobre a necessidade de se priorizar fortemente a educação básica. No mundo da “sociedade do conhecimento”, no qual não se ingressa sem universidades de alto padrão, essa ideia só traz a certeza de perdermos novamente o trem da história. Em que mundo estamos?

Artigo originalmente publicado no blog Ciência & Matemática, hospedado na página do jornal O Globo, e reproduzido na edição 2.069 do Boletim UFMG

Ricardo Takahashi / professor titular do Departamento de Matemática do ICEx