Pesquisa e Inovação

Estudo analisa linguagem do cancelamento no Instagram e seus impactos

À luz da teoria da impolidez linguística, pesquisador da Fale analisou os casos de Gabriela Pugliesi, Lilia Schwarcz, Monark e Arthur do Val, alvos de 'linchamento virtual'

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A impolidez linguística é uma estratégia largamente utilizada pelos canceladores no universo digitalIlustração: Sunça | UFMG

A “linguagem do cancelamento” nas redes sociais — que inclui ofensas diretas ao caráter ou à aparência do alvo, uso de emojis hostis e engajamento em campanhas de ódio — reflete uma cultura de hostilidade e promove um ambiente tóxico nas interações digitais. Essa é uma das conclusões da pesquisa empreendida por Mateus de Souza Miranda, da Faculdade de Letras (Fale).

No ano passado, ele defendeu, no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos (Pós-Lin), a dissertação A face digital na cultura do cancelamento: um caso de (im)polidez linguística?. Mateus Miranda analisou os casos de quatro personalidades brasileiras que foram alvo da cultura do cancelamento nas redes sociais: a influenciadora Gabriela Pugliesi, a antropóloga Lilia Schwarcz, o youtuber Monark e o ex-deputado Arthur do Val. 

“O objetivo da pesquisa foi investigar como a impolidez se manifesta na linguagem da cultura do cancelamento, utilizando uma grande quantidade de comentários autênticos extraídos de interações de cancelamento virtuais de grande repercussão no Brasil”, informa Mateus Miranda. Sua pesquisa adotou metodologia quantitativa e qualitativa para analisar as estratégias verbais punitivas dos usuários. “Buscamos, assim, quantificar palavras e frases comuns em cada cancelamento e descrevê-las à luz da teoria da impolidez linguística”, completou o autor.

Os “canceladores”, como revelou a investigação de Mateus Miranda, utilizam uma combinação de recursos linguísticos e ferramentas de comunicação digital para invadir o território virtual do alvo, “com clara intenção de agredir”, segundo o autor.

Episódios abordados
Em 2020, durante a pandemia de covid-19, Gabriela Pugliesi compartilhou vídeos de uma festa em sua casa, onde ela e os convidados pareciam debochar das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). A influenciadora foi xingada de "irresponsável", "egoísta" e "insensível" pelos internautas. A pressão social a levou a desativar suas redes sociais por um período. Por sua vez, Lilia Schwarcz foi hostilizada devido a uma crítica que fez ao álbum visual Black is King da cantora Beyoncé. Sua análise foi interpretada como uma desvalorização da cultura negra, e os usuários a acusaram de “racista” e “ignorante”.

O youtuber Monark passou a ser cancelado em 2022 quando, numa entrevista concedida, defendeu a criação de um partido nazista no Brasil. Insultos como "seu idiota" ou "seu bosta" foram utilizados por usuários das redes para deslegitimar sua figura. Por fim, a ruína do ex-deputado estadual de São Paulo Arthur do Val se deu quando ele teve vazada uma conversa na qual declarou, sobre as mulheres ucranianas vítimas da guerra: "são fáceis porque são pobres". A repercussão gerou perda de apoio político e de seguidores nas redes.

Os casos analisados, de acordo com o autor da tese, têm em comum o uso do pronome 'você' para se referir aos alvos dos linchamentos virtuais. “Isso aproxima o cancelador e personaliza o ataque”, comentou. As postagens agressivas também foram caracterizadas, nos quatro episódios, pelo uso de emojis. “Os emojis de náusea e de vômito foram muito usados para expressar a repulsa ou o nojo dos internautas”, disse. Palavras relacionadas a funções escatológicas, como “'merda”' e “bosta”, também figuram, como destacou Mateus Miranda, como “termos-chave” nas postagens de cancelamento.

Mateus Miranda:
Miranda: objetivo é fazer com que o cancelado desapareça das redes ou sofra consequências tangíveisFoto: arquivo pessoal

Metodologia
Foi compilado um corpus de aproximadamente 1.500 comentários postados no Instagram. O tratamento e a organização dos dados demandaram as ferramentas disponíveis no site Sketch Engine, que permite a manipulação e a exploração de grandes volumes de dados textuais. 

A pesquisa também se apoiou na abordagem forma-função, oriunda dos estudos da pragmática de corpus. Essa metodologia possibilitou uma análise detalhada das sequências lexicais e das estratégias de impolidez utilizadas nos comentários e postagens, revelando como as interações sociais se manifestam em contextos de cancelamento.

O cancelamento por meio das postagens revela, segundo Mateus Miranda, uma dinâmica de pertencimento e poder, à medida que reforça a sensação de colaboração e coesão dentro do grupo. “Por meio dessas estratégias, os canceladores buscam punir aqueles cujas atitudes são consideradas imorais. A internet dá voz a todos, e os canceladores, ao se colocarem em uma posição de superioridade moral, sentem-se à vontade para publicar comentários impolidos, sem inibição. O objetivo final é que o cancelado delete suas contas, desapareça das redes ou sofra consequências tangíveis, como a perda de cargos ou patrocínios. Há uma comemoração coletiva quando o objetivo é atingido, o que fortalece ainda mais a identidade do grupo”, detalha.

Mateus Miranda lembra que, no contexto brasileiro, existem propostas de regulamentar o uso da internet, com o objetivo de conscientizar os usuários sobre as responsabilidades e os riscos associados ao comportamento on-line. “Nesse sentido, minha pesquisa pode ter desdobramentos práticos na área educacional, especialmente no desenvolvimento de materiais pedagógicos sobre (im)polidez e comportamento digital. Considerando que os alunos estão cada vez mais expostos à linguagem agressiva on-line, isso pode contribuir para discussões sobre o uso das tecnologias, os desafios enfrentados por professores e a forma como os alunos empregam a linguagem no contexto da cultura digital, promovendo uma reflexão sobre comportamentos tanto no ambiente virtual quanto no presencial”, finaliza.

Dissertação: A face digital na cultura do cancelamento: um caso de (im)polidez linguística?
Autor: Mateus Emerson de Souza Miranda
Orientadora: Marisa Mendonça Carneiro
Defendida em: 24 de março de 2024, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (Pós-Lin) da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG

Matheus Espíndola