Pesquisa e Inovação

Estudo lista quase 300 palavras e expressões que revelam a relação de Salinas com a cachaça

Mauricio Alves, natural da cidade do Norte de Minas e mestre em Linguística pela UFMG, entrevistou trabalhadores de diferentes setores da produção da bebida

Moinho do século 19, n Museu da Cachaça de Salinas
Moinho do século 19, exposto no Museu da Cachaça de Salinas Divulgação

“A pinga era forte até demais. O pessoal comprava as pingas e exigia o que a gente chamava aqui de água fraca. Que jogava fora no término da lambicagem.” (trecho de entrevista da pesquisa)

Poucas cidades se relacionam de maneira tão intensa com uma atividade produtiva quanto Salinas, no Norte de Minas Gerais. Para ter certeza disso, basta saber que o município é, desde 2018, a Capital Nacional da Cachaça (o título foi outorgado por meio da Lei 13.773). Um aspecto particular dessa relação é o mote central da pesquisa de mestrado defendida recentemente, no Programa de Pós-graduação em Linguística da Faculdade de Letras da UFMG, por Maurício Alves de Souza Pereira.

O pesquisador encontrou léxico muito diversificado e elaborou um glossário com 272 entradas. Essas palavras e expressões traduzem, de maneiras distintas, a relação dos salinenses com a produção, a comercialização e o consumo da aguardente de cana, e também aspectos da sociabilidade vinculada à bebida.

Mauricio entrevistou dez homens e quatro mulheres – canavieiros, alambiqueiros, tecnólogos, vendedores, entre outros profissionais. Ele consultou nove dicionários, desde o século 18, e achou a maior parte das lexias nas obras contemporâneas, como Michaellis, Aulete e Houaiss. “A pesquisa revelou modificações de forma e sentido em muitos dos termos, que aparecem relacionados a plantio e colheita da cana, produção – aí incluído o uso de máquinas e instrumentos – e características sensoriais da cachaça, entre outros aspectos da atividade”, conta o pesquisador, que leciona em escolas da educação básica em Montes Claros.

Ele ressalta que o léxico da cachaça foi construído social e historicamente e reflete os saberes e a cultura do povo. “A cachaça significa renda e identidade. Em seus relatos, os participantes da pesquisa explicam a cadeia produtiva e mostram como a produção da bebida passou de geração para geração. Falam da cachaça com orgulho, defendem que ela seja mais reconhecida e valorizada como um produto que faz parte da história do país”, comenta Mauricio Alves.

Uma das palavras encontradas pelo pesquisador nas entrevistas é losna, uma erva (também conhecida como absinto ou erva-de-fel, entre outros nomes) que tem fama de inibidor sexual. Segundo Mauricio, é tradição que homens que visitam uma mulher que acabou de dar à luz bebam com o pai da criança a cachaça curtida na losna. É uma forma de se solidarizar com o marido que deve respeitar o resguardo pós-parto da mulher.

Linguagem e cultura
Salinas está na região do Alto Rio Pardo, próximo à divisa com a Bahia, e fica a 640 quilômetros de Belo Horizonte. De acordo com os números mais recentes do IBGE, a cidade tem perto de 42 mil habitantes, e eles estão concentrados, em grande parte, na zona rural. A produção agrícola e de alimentos como o requeijão e a carne de sol são outras fontes importantes de sustento para as famílias salinenses, como Maurício Alves informa em seu trabalho. A região é muito quente, durante quase todo o ano.

Terra natal de Mauricio, que realizou um desejo forte de produzir um estudo sobre a cidade, Salinas sedia o curso de Tecnologia em Produção de Cachaça, do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais. E abriga o Museu da Cachaça, que reúne elementos históricos, milhares de garrafas e é visitado por brasileiros e estrangeiros.

Em sua introdução teórica, a dissertação aborda aspectos como as relações entre linguagem e cultura e recorre a campos como a antropologia linguística. Nos capítulos seguintes, Mauricio Alves discorre sobre a metodologia, a cidade e sua relação com a cachaça, expõe as fichas lexicográficas e oferece informações sobre os termos relacionadas à etimologia e quantidade de ocorrências, entre outros aspectos.

Mauricio Alves consultou nove dicionários editados desde o século 18
Mauricio Alves consultou nove dicionários editados desde o século 18 Acervo pessoal

Substantivos com origem no latim e no tupi
Mauricio visitou canaviais, fazendas, indústrias, laboratórios e gravou as entrevistas (do tipo semiestruturada) com algum grau de informalidade e sem avisar aos participantes que um de seus objetivos centrais era a coleta de palavras e expressões próprios ao universo da cachaça. Segundo ele, a maior parte dos termos de seu glossário é composta de substantivos (depois aparecem verbos e adjetivos) e tem origem no latim e no tupi – nesse caso, por causa, sobretudo, da alta incidência dos nomes de ervas presentes nas entrevistas.

“Em Salinas, é muito presente o hábito de misturar ervas à cachaça, principalmente com a ideia de que a bebida ganha, dessa forma, poder de combater dores, problemas digestivos e até o câncer”, explica Mauricio, que se deteve também na análise das características fonéticas de parte das palavras.

Ele garante que não é fã de bebidas alcoólicas, mas muitas vezes não teve como recusar provas de aguardente. Entre um gole e outro, Mauricio pôde relembrar ou aprender termos como cabeça e coração, as partes descartada e principal da cachaça, adornar (armazenar a bebida nas dornas de bálsamo e amburana, por exemplo, para o envelhecimento), parol (recipiente onde fica o caldo da cana nos engenhos de açúcar) e pé de cuba (líquido denso composto de leveduras e caldo de cana). Em tempo: água fraca, que aparece na epígrafe desta matéria, tirada de uma das entrevistas do estudo, é o resíduo de teor alcoólico mais baixo e de baixa qualidade.

125 marcas registradas
A produção de cachaça em Salinas começou no Brasil Colônia, com a chegada de grandes latifundiários, sobretudo da Bahia. Era atividade secundária, para comercialização em pequenas quantidades e consumo próprio – o motor da economia foi por muito tempo a agropecuária. Conforme conta Mauricio Alves em sua dissertação, nas últimas décadas do século 19, foi introduzida na região a cana caiana, uma das variedades de cana-de-açúcar mais utilizadas na fabricação da bebida. E a produção foi crescendo, junto com o padrão de qualidade. Na década de 1930, iniciou-se o cultivo da cana java, que se adaptou muito bem ao solo e ao clima da região. Nos anos 40, ganhou notoriedade Anísio Santiago, pioneiro na formalização da produção e do comércio de cachaça e o primeiro a obter uma marca formalmente legalizada, a Havana, referência até os dias atuais e uma das cachaças mais famosas do mundo. Salinas tem o maior número – são 125 – de marcas registradas de aguardente de cana no Brasil.

Dissertação: O léxico da Cachaça em Salinas (MG)
Autor: Mauricio Alves de Souza Pereira
Orientador: Eduardo Tadeu Roque Amaral
Defesa: 9 de fevereiro de 2021, no Programa de Pós-graduação em Linguística

Itamar Rigueira Jr.