Ministra Damares Alves teria agido para impedir aborto de criança de 10 anos, segundo jornal
À UFMG Educativa, professora Angélica Barroso Bastos, mestre em direito pela UFMG, comentou gravidade do caso revelado pela Folha de S. Paulo
Uma reportagem publicada neste domingo no site do jornal Folha de S. Paulo afirma que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, agiu nos bastidores para impedir o aborto legal realizado por uma menina de 10 anos, que havia engravidado após ser vítima de estupros frequentes. Damares Alves teria envolvido representantes do ministério em uma operação que teria buscado transferir a menina para um hospital no interior de São Paulo, onde a garota aguardaria a evolução da gestação e teria o bebê. Representantes da ministra também teriam sido os responsáveis por vazar o nome da criança para uma extremista bolsonarista, que divulgou o nome da garota nas redes sociais.
A garota sofria abuso sexual há quatro anos, de acordo com investigação da Polícia Civil do Espírito Santo. Ela vivia no interior do estado e foi levada para a capital, Vitória, onde o hospital procurado pela família se recusou a fazer o aborto, que já havia sido autorizado pela Justiça. O bebê estava com pouco mais de 22 semanas de gestação. Então, a menina foi transferida para uma instituição pública de saúde no Recife, onde o aborto foi, enfim, realizado, no dia 16 de agosto. A lei brasileira prevê o direito ao aborto quando a gestação decorre de estupro, em casos de anencefalia do feto e quando há risco de morte para a mãe.
Segundo a reportagem da Folha, a menina de 10 anos ainda estava na cidade onde morava, São Mateus, no interior do Espírito Santo, quando a ministra Damares Alves começou a agir para impedir o procedimento do aborto legal. Segundo fontes ouvidas em sigilo pelo jornal, Damares enviou para a cidade representantes do ministério e aliados políticos para pressionarem conselheiros tutelares e outras pessoas responsáveis por conduzir o caso da criança. A própria Damares teria participado de uma dessas reuniões por meio de uma videochamada. Um dos encontros teria incluído quatro mulheres que teriam se identificado como médicas de um hospital da cidade de Jacareí, interior de São Paulo. Esse grupo teria apresentado a proposta de o hospital assumir os cuidados médicos da criança até que ela estivesse pronta para o parto.
Mestre em Direito pela UFMG, a professora Angélica Barroso Bastos, que pesquisa o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é autora do livro Direitos humanos das crianças e dos adolescentes, que trata das contribuições do ECA para a efetivação dos direitos infanto-juvenis, avaliou, durante entrevista ao programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa, nesta terça-feira, 22, que todas essas práticas reveladas pela Folha de S. Paulo são ilegais e desrespeitam, claramente, a Constituição Federal (CF) e o ECA. "É preciso levar em consideração que, quando a Constituição de 1988 foi promulgada, e, dois anos depois, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, foram estabelecidas bases protetivas, que têm como ênfase a proteção integral da criança e do adolescente. Isso aparece tanto no artigo 117 da CF quanto no artigo 1º do ECA", explicou.
Essa proteção integral no país, segundo Angélica Bastos, busca proteger a criança e o adolescente nos sentidos físico, sexual, psicológica e também em relação à própria imagem. "Tudo isso foi desconsiderado quando a ministra interveio não para proteger a criança, mas para satisfazer uma vontade pessoal, que buscava a manutenção da gestação até que se pudesse fazer um parto antecipado, podendo colocar a criança, até mesmo, em risco de morte. Não se buscou a figura da proteção da criança que estava exposta e sendo submetida a práticas sexuais e abusos cometidos pelo tio durante anos. Não houve preocupação com a violação dessa criança, que já estava tendo seus direitos desrespeitados há muitos anos", afirmou.
Angélica Bastos também criticou diretamente o envio de membros do Ministério para participar da ação. "Houve uma espécie de aliciamento de membros do Conselho Tutelar, pessoas que têm a função de proteger e acompanhar a criança na interrupção legal dessa gestação. Houve proposta de melhorias também para o Conselho Tutelar da cidade, com envio de carros, materiais como ar condicionado, computadores. Obviamente isso é uma ilegalidade", criticou.
Em resposta à Folha de S. Paulo, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que deslocou uma equipe para a cidade de São Mateus para “acompanhar a atuação da rede de proteção à criança vítima e oferecer suporte, no sentido de fortalecimento da rede de apoio às crianças vítimas de violência”. Nessa segunda-feira, 21, Damares Alves, no Twitter, disse que o jornal publicou mentiras e reiterou que a atuação do ministério “ocorreu para fortalecer a rede de proteção à criança em São Mateus”.
O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL/RJ) protocolou um pedido de convocação para que a ministra explique, no Congresso Nacional, a atuação de seus assessores no caso. Já o senador Humberto Costa (PT/PE) disse que vai ingressar com uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) para que Damares Alves responda por crime de responsabilidade.
A professora Angélica Barros Bastos pesquisa o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é autora do livro Direitos humanos das crianças e dos adolescentes, que trata das contribuições do ECA para a efetivação dos direitos infanto-juvenis. Esse livro foi publicado pela editora Juruá e resultou de uma dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da UFMG, em 2012, sob orientação da professora Mariá Brochado.