Opinião

[Opinião] A agenda antirracista é um caminho sem volta

Mestrando da Faculdade de Direito analisa a discriminação histórica de pessoas negras e a situação atual, ainda marcada por gigantesco fosso social que as separa dos brancos

Flagrante de aula da Formação Transversal em Relações Étnico-raciais
Aula da Formação Transversal em Relações Étnico-raciais, realizada na UFMGLucas Braga | UFMG

Foi dada a partida para o salutar debate sobre os impactos das ações afirmativas no país, tanto por causa da revisão da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) quanto por causa da avaliação do emprego do Plano e Ação de Durban, que foi inserido na agenda pública após a realização da 3ª Conferência mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas, sediada pela África do Sul, em 2001. De lá para cá, o mundo nunca mais foi o mesmo, e diversas nações desenvolvem alguma forma de ação afirmativa para públicos específicos e com objetivos de inserção social em sociedades sabidamente excludentes – na linha do que ocorreu na antiga União Soviética, que adotou cotas para os batrak (assalariados agrícolas) e os bedniak (camponeses pobres), que tinham prioridade para receber alimentação e educação (nas escolas de liquidação do analfabetismo) e participar dos programas de capacitação técnico-agrícola e adquirir máquinas e tratores.

A revisão proposta pelas autoridades governamentais brasileiras está focada em um contexto político que consolidou as ações afirmativas para impulsionar a cidadania de pessoas que não teriam oportunidades nem estariam em espaços de poder que lhes foram negados por séculos em razão de múltiplas discriminações, desde que a Modernidade avançou sobre distintos territórios, solapando identidades e violando corpos e mentes com sua lógica necropolítica. A violência estatal, o monopólio da comunicação, a manipulação ideológica e a escravização de povos foram as bases instrumentais dessa hegemonia masculina, branca e heterossexual. 

Não que isso tenha mudado. Mas, hoje, a resistência e a consciência dão sentido a uma nova rota societária pela transformação político-social do que ainda restou de autoritário em nossas gentes, tentando suplantar práticas e modelos do bem e do belo ainda repletos de preconceitos ocidentais. É a própria representação estatística que dá conta de um gigantesco fosso social separando pessoas brancas das demais no Brasil. Negros são 54% da população nacional, mas ocupam somente 20% das cadeiras no Congresso Nacional; o risco de uma pessoa negra ser assassinada nas cidades brasileiras é 74% maior do que o das não negras; praticamente não há CEOs negros nos conglomerados midiáticos, e quase não há apresentadores e apresentadoras negras nos telejornais, programas esportivos e na publicidade de massa do país. Esse apartheid à brasileira vem sendo enfrentado por uma agenda antirracista desde que o Estado brasileiro topou superar o racismo e formas correlatas de discriminação herdadas de um passado colonial não muito distante. Ressalte-se que é uma agenda sem volta, ainda que cercada por questionamentos daqueles que sempre gozaram privilégios da branquitude amparados na dominação liberal.

É no cenário de maior êxito do liberalismo que a escravidão triunfa no coração do mundo, e a defesa do direito à propriedade, essência de todo liberalismo como pensamento da classe dominante, resulta na coisificação e na animalização dos trabalhadores, servos e escravizados. John Locke (1662-1704) e Stuart Mill (1806-1873) são apologistas da liberdade, mas o são ainda mais da manutenção do sistema escravocrata! É fácil ser liberal quando se tem a ajuda sacrossanta do Estado e toda uma estrutura para imposição das ideias liberalizantes mundo afora, para subjugar povos por meio do aparato bélico e financeiro e garantir a sobrevivência das personas de pele alva. A Companhia das Índias Ocidentais (1621), por exemplo, teve significativo aporte de dinheiro para desempenhar suas funções na caça aos bens materiais e para conquistar colônias nas Américas e na África Ocidental. E as palavras-chave para entender esse empreendimento são saque, pilhagem, estupro, monopólio da navegação e cobiça da política exterior holandesa entre 1630 e 1654. Ambas, a empresa e a política, eram amalgamadas pelo poderio militar, acessório indispensável para garantir hegemonia política e carta branca dos governos de plantão para matar. O sistema da democracia liberal tem cor, raça e religião e segue orientação capitalista e exterminadora intrínseca. Uma democracia censitária por natureza, como foi na Grécia Antiga.

A resistência e a consciência dão sentido a uma nova rota societária pela transformação político-social do que ainda restou de autoritário em nossas gentes, tentando suplantar práticas e modelos do bem e do belo ainda repletos de preconceitos ocidentais.

Em outra ponta dessa biópsia histórica e em contexto histórico diferente, o Brasil herdou toda essa tradição de separatismo censitário, com base no qual foram editadas leis e regulamentos para beneficiar pessoas alvas, originárias da Europa (Gobineau previu que o Brasil seria uma nação branca e civilizada, construída por política migratória eurocentrada). Nessa estrutura jurídica, a escravizados e africanos era proibida a educação pública, com a promulgação do Decreto 1.331, de 1854, que sancionou o Primário e o Secundário na Corte, e com o racista Decreto 528, de junho de 1890, que, ao mesmo tempo que vetava a entrada de cidadãos de África, incentivava, custeando suas passagens, a vinda de imigrantes oriundos do setor agrícola europeu. 

Por tudo isso, não é possível falar em racismo reverso ou alguma modalidade de revenge porn, como sugerem nomes como Antonio Risério, uma vez que toda essa estrutura de privilégios da branquitude não foi alterada e ainda está funcionando a pleno vapor no país. Obviamente, a escravidão acabou oficialmente, mas oficiosamente continua operando por meio de aparatos de segregação racial nos espaços de bem-estar social, nos espaços de poder e de definição financeira e econômica, nos quais negros e negras estão praticamente ausentes.

Alexandre Braga, mestrando em Direito na UFMG