Opinião

[Opinião] O lugar do Brasil na fila da vacina

Para o professor Dawisson Lopes, estratégia deliberada de não combater o novo coronavírus desde o início deixou a pandemia fora de controle no país

Pesquisadora em atividade no CTVacinas da UFMG, um dos principais centros de desenvolvimento de imunizantes do Brasil
Pesquisadora em atividade no CTVacinas da UFMG, um dos principais centros de desenvolvimento de imunizantes do Brasil Pedro Vilela | Getty Images

O governo brasileiro tem celebrado o lançamento de vacinas contra a covid-19 no país e noticiado o fato como um grande exemplo de sucesso. A imprensa nacional, por outro lado, desmente os dados oficiais e oferece uma visão muito mais crítica do processo. Afinal, o Brasil é um campeão de imunização ou um retardatário da pandemia, cuja negligência causou um sofrimento desnecessário ao seu povo, com potencial prejuízo à humanidade?

O diabo mora nos detalhes. Deveria ter sido notado, desde o início, que o Brasil ainda não desenvolveu uma vacina contra a covid-19. Apesar de possuir cientistas de primeira linha e um robusto parque industrial, o país não participou do grupo de nações pioneiras que investiram em imunizantes. Entre os países membros do Brics, o Brasil é o único que não possui uma vacina própria em estágio de desenvolvimento. Mesmo Cuba – uma ilha fortemente atingida pelo embargo dos Estados Unidos desde os anos de 1960 e cujo tamanho da população não chega nem a 5% da brasileira – está, provavelmente, na frente da grande nação sul-americana.

Nas últimas semanas, divulgaram-se extratos das conversas entre representantes de empresas farmacêuticas e agentes públicos. Em todas elas, observa-se a falta de vontade do governo brasileiro em tomar as medidas necessárias para garantir o estoque de imunizantes para os cidadãos do país. Pfizer, Sinopharm e Sinovac – para nomear apenas as maiores – foram esnobadas pelo governo, que falhou em garantir o interesse nacional em diversas ocasiões e com grande variedade de argumentos. Tudo isso em um contexto no qual o Brasil lidera o ranking como o segundo país do mundo com o maior número de mortes causadas pela covid-19 (mais de 270 mil, em 15 de março de 2021) e uma média móvel que supera 1,5 mil mortes diárias (em meados de março de 2021).

O governo brasileiro parece ter acordado para o grande erro de estratégia que cometeu. Sim, um erro terrível, pois apenas a vacinação em larga escala da população, a essa altura do campeonato, parece capaz de promover a retomada dos circuitos econômicos – uma prioridade para o governo de Jair Bolsonaro. O ministro da Ciência e Tecnologia e o presidente da República – este um antivacinista desde o início – agora começam a considerar a possibilidade de o Brasil desenvolver uma vacina nacional contra a covid-19, mas ainda reclamam da falta de recursos para seguir com a implementação dessa proposta.

O governo brasileiro parece ter acordado para o grande erro de estratégia que cometeu. Sim, um erro terrível, pois apenas a vacinação em larga escala da população, a essa altura do campeonato, parece capaz de promover a retomada dos circuitos econômicos.

Há dois pontos que comprometem seriamente a posição do Brasil na corrida global pela vacina: (1) falta autonomia para a indústria farmacêutica nacional, que necessita da importação de insumos. Apenas cerca de 10% dos insumos farmacêuticos que alimentam essa indústria são encontrados no Brasil; (2) a China responde, hoje, por aproximadamente metade da produção global de insumos farmacêuticos. O país asiático foi repetidamente atacado durante os dois primeiros anos do governo de Bolsonaro e, agora, parece que haverá retaliação de Pequim, que atrasará as entregas de insumos ao Brasil. Na verdade, isso já está acontecendo.

Além disso, o atraso em fechar os contratos para a importação tornou mais difícil a chegada das primeiras doses e o início da vacinação, apesar de o país apresentar um histórico know-how em campanhas de imunização. Isso sem mencionar o proselitismo do ministro da saúde, Eduardo Pazuello, que insistia no “tratamento precoce da covid-19”, prescrevendo um coquetel de medicamentos feito com cloroquina, ivermectina e azitromicina, com pouquíssima – se é que existe alguma – comprovação científica, que evitaria os sintomas mais severos da doença.

O país que costumava vacinar dezenas de milhões de cidadãos em poucas semanas agora gasta recursos e energia sem alcançar, nem de perto, a eficiência de outrora. Vários servidores civis do Ministério da Saúde foram substituídos por militares. O Brasil, que tem o quinto maior território, a sexta maior população e a décima-segunda economia do mundo, foi apenas o 56º país a começar a implementação de um plano nacional de imunização. Mesmo no contexto regional, o Brasil não liderou esse processo, ficando atrás de países como Argentina, Chile, Costa Rica e México. Esses quatro começaram a vacinar as suas populações em dezembro de 2020, três semanas antes de as duas primeiras vacinas terem sido aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Uma particularidade que enfraquece o Brasil na fila global pela vacina: a compra das doses do imunizante está longe de ser suficiente para vacinar todos os brasileiros. De acordo com dados de agências independentes, enquanto o Canadá comprou quase cinco vezes o número de doses necessárias para imunizar toda a sua população, apenas metade dos brasileiros – sendo muito otimista – poderá ser imunizada com a quantidade que será entregue ao Brasil. Esse limiar de imunização da sociedade (50% da população total) nem mesmo garante – de acordo com os parâmetros aplicados pela comunidade internacional de cientistas – a chamada “imunidade de grupo”.

O país que costumava vacinar dezenas de milhões de cidadãos em poucas semanas agora gasta recursos e energia sem alcançar, nem de perto, a eficiência de outrora. Vários servidores civis do Ministério da Saúde foram substituídos por militares. O Brasil, que tem o quinto maior território, a sexta maior população e a décima-segunda economia do mundo, foi apenas o 56º país a começar a implementação de um plano nacional de imunização.

Há estimativas de que a imunização no Brasil será completada em julho de 2022, mas a campanha nacional, no momento, está paralisada devido à falta de insumos farmacêuticos e vacinas. Países que buscaram pela vacina desde o início da pandemia devem terminar suas campanhas de vacinação até o fim de 2021 ou início de 2022, no mais tardar. Como resultado, eles vão reativar suas economias e retomar o crescimento mais facilmente. O Brasil, se tudo correr bem, vai se recuperar da crise de 2020 somente no fim de 2021. O desenvolvimento real ainda vai permanecer como tarefa para os muitos anos que virão.

Consistentemente com todas as expectativas, o país subiu alguns degraus no ranking de imunização global. O Brasil já está entre os 10 países do mundo em doses de vacina administradas a cada 100 pessoas e é o quinto no total de doses administradas (mais de 11 milhões até 15 de março de 2021). A experiência acumulada ao longo dos anos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) permite que municípios e estados vacinem com velocidade, desde que haja vacinas disponíveis. O problema, portanto, não está relacionado tanto à campanha de vacinação per se, e, sim, aos estágios prévios da cadeia de suprimentos.

Uma estratégia deliberada de não combate ao novo coronavírus deixou a pandemia fora de controle no Brasil. Nesse sentido, o surgimento de novas “variantes” transforma o país em um vilão e um pária global – um potencial sabotador de vacinas já aprovadas e distribuídas no mundo todo. Como é bem conhecido, se um país falha em impedir mutações do Sars-CoV-2, ele acaba gerando uma ameaça para o mundo inteiro, uma vez que, como efeito colateral, isso pode adiar o fim da pandemia. Esse é mais um motivo para que os líderes políticos brasileiros sejam responsabilizados pelo atual cenário no país.

[Artigo originalmente publicado na Observer Research Foundation (ORF), em 11/3/2021]

Dawisson Belém Lopes / professor do DCP e diretor-adjunto de Relações Internacionais da UFMG