Pesquisa e Inovação

Pessoas LGBT+ sofrem com recriminalização no sistema prisional, indica relatório do NUH

Estudo feito com dados de penitenciária em São Joaquim de Bicas revelou uso arbitrário de processos disciplinares para manutenção de prisão durante a pandemia de covid-19

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Folha inicial de procedimento disciplinar no sistema prisional: efeitos graves para pessoas LGBT+Imagem: Reprodução

O Processo Administrativo Disciplinar (PAD), instrumento de apuração de faltas dentro das unidades prisionais, tem sido utilizado para criminalizar e recriminalizar pessoas LGBTQIA+ em privação de liberdade. É o que indica o relatório O uso dos Processos Administrativos Disciplinares (PAD’s) na ala LGBT+ da Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria (PPJSA), publicado neste mês pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBTQIA+ (NUH) da UFMG. 

Para o coordenador do NUH, professor Marco Aurélio Máximo Prado, o relatório evidencia a recorrência de um “processo de recriminalização e escancara a gravidade dos efeitos dos PADs na vida dessas pessoas, especialmente das travestis e mulheres trans, que vivem embates diários em busca de direitos básicos também nesses espaços”.

Os pesquisadores analisaram processos criminais das 302 pessoas presas na antiga ala LGBT+ da penitenciária localizada em São Joaquim de Bicas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Inaugurada em 2009, a ala deixou de existir em 2021, quando a PPJSA foi transformada em unidade prisional exclusiva para homens gays e bissexuais e mulheres transexuais e travestis. A medida foi tomada após interdição parcial da unidade, pela Justiça, por conta do alto número de tentativas de suicídio na ala LGBT+.

A pesquisa, que se concentra em dados dos anos de 2019 e 2020, ganhou corpo em meio à pandemia da covid-19. Nesse período, o Transpasse, projeto de extensão que oferece assistência jurídica e psicossocial a pessoas trans e travestis, a fim de combater a criminalização e o encarceramento, fez um levantamento, em parceria com a Clínica de Direitos Humanos (CDH), para verificar, em lista disponibilizada pela Defensoria Pública de Minas Gerais, quais pessoas LGBT+ poderiam cumprir pena em regime domiciliar, em razão da Recomendação 62, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e da Resolução Conjunta 19, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que visavam conter o avanço da covid-19 no sistema carcerário brasileiro. A Recomendação do CNJ previa que todos os presos em regime aberto e semiaberto cumprissem pena em prisão domiciliar.

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Marco Prado: processos não funcionavam conforme previsão legalFoto: Acervo pessoal

Manutenção da prisão
A análise da lista, explica Marco Prado, tinha a finalidade de solicitar a progressão de regime para as pessoas LGBT+ que poderiam gozar da medida. “No entanto, uma análise preliminar dos dados demonstrou como os PADs eram utilizados para manutenção do cárcere e para a não concessão de qualquer benefício a essas pessoas, o que indica que os processos, na verdade, não funcionavam conforme a previsão legal, mas com outras finalidades”, argumenta. Isso porque a Resolução Conjunta vedava a concessão do regime domiciliar a pessoas que estivessem respondendo a algum PAD para apuração de cometimento de falta classificada como grave.

O levantamento feito pela equipe do projeto resultou na identificação de 140 PADs atribuídos a pessoas LGBT+. Desse montante, de acordo com o relatório, 67,86% foram motivados por falta grave. “O impedimento para gozar da progressão de regime não era para pessoas condenadas por alguma falta grave. A mera apuração, em aberto, de uma potencial falta grave já era impeditivo para que as pessoas gozassem da medida”, ressalta a pesquisadora do NUH Isadora Cunha Rodrigues, mestranda em estudos de gênero, sexualidade e direito no Programa de Pós-graduação em Direito.

Arbitrariedade
Isadora Rodrigues explica que a leitura qualitativa dos “boletins de ocorrência” internos demonstrou o caráter arbitrário dos PADs. “Podemos dizer que são instrumentos de controle de gênero ou de superinscrição da moralidade do agente, que detém um superpoder para fazer o que quer, legitimado por um processo totalmente arbitrário, mas que, ao longo do caminho, vai ganhando ares de legalidade”, analisa a pesquisadora. “Nesse estudo, a gente pôde ver a pluralidade de condutas que, naquele contexto prisional, configuravam falta grave.”

“Formas de falar, de se vestir, de reivindicar direitos, de se relacionar com parceiros de cela, até mesmo formas de sofrimento psíquico, de existir como corpo soropositivo, entre outras, são todas passíveis de sanção dentro de operações que tornam ilegal aquilo que, de alguma maneira, é entendido como imoral. A disciplina torna a divergência de gênero passível de sanção e posteriormente criminalizável”, exemplificam, no relatório, os pesquisadores do NUH.

Punida por 'uso incorreto do uniforme'
Um caso classificado como emblemático pela equipe do Núcleo é o de uma travesti punida por amarrar a blusa do uniforme, utilizada como um top. “Essa pessoa foi alvo de um PAD aberto sob alegação de uso incorreto do uniforme, ainda que haja previsões legais para o tratamento de pessoas LGBT+ em unidades prisionais que vão na contramão desse tipo de interpretação. Ou seja, a forma como a pessoa se identifica e se veste deve ser respeitada, pois está amparada por resoluções. Infelizmente, esses direitos são facilmente ignorados por quem está na ponta do processo”, afirma Marco Prado. “Situações como essa ilustram as tentativas de controle e criminalização de corpos tomados como dissidentes de gênero e sexualidade nesses ambientes.”

Entre os instrumentos citados por Isadora Rodrigues, está a Resolução Conjunta 1/2014, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, que “estabelece parâmetros nacionais para o tratamento penal de pessoas LGBT+ em penitenciárias brasileiras”. Conforme explicita o relatório do NUH, às pessoas travestis e transexuais, “a resolução garante, por exemplo, o uso do nome social, o acompanhamento integral à saúde e a manutenção do tratamento hormonal”.

'Desobediência e desrespeito'
O relatório da pesquisa também indica que é recorrente a classificação de supostos atos de indisciplina com os termos “desobediência” e “desrespeito”. Esse tipo de justificativa aparece em 48% dos PADs por falta grave analisados. “São dois termos abertos o suficiente para abarcar diversas interpretações, ainda mais em um ambiente conflituoso, como o de uma unidade prisional, e em especial onde há pessoas que fogem às normas de gênero e sexualidade”, situa Isadora Rodrigues.

Segundo a pesquisadora, até mesmo o Departamento Penitenciário de Minas Gerais, que deveria zelar pelo cumprimento das resoluções no estado, rechaçou, por meio de nota técnica, as recomendações nacionais para o tratamento de pessoas LGBT+ no ambiente prisional, classificando-as como um conjunto de privilégios que não se justificariam. “Fica evidente que os responsáveis por gerir esse sistema encaram os direitos dessas pessoas como privilégios, baseados numa carga moral muito forte sobre quem são essas pessoas. Isso também exemplifica por que essas recomendações nacionais para o tratamento adequado das pessoas LGBT+ são ignoradas com facilidade pelo conjunto de profissionais da unidade prisional”, exemplifica.

Prejuízos processuais
De acordo com o relatório, 105 dos 140 PADs foram finalizados no recorte temporal da pesquisa. Desses, 50,48% resultaram em condenação, 34,39% em absolvição, 10,48% em reclassificação para falta média, 0,95% em reclassificação para falta leve, 0,95% em isenção de falta, e 0,95% foram arquivados. Em dois casos, não houve decisão. O documento também explicita que a duração média dos processos foi de 84 dias, período superior ao previsto na legislação.

“Esse é um dos nossos achados mais importantes: a legislação prevê que o PAD dure, no máximo, 30 dias, renováveis, com justificativa, por mais 30. Encontramos PADs que duram uma eternidade do ponto de vista legal. E, embora se registre uma maioria de condenações – até porque existe a tendência de que um trabalhador da ponta ratifique a informação que o colega preencheu –, mesmo quando a pessoa chega a ser absolvida, ela tem, por esse tempo de duração do PAD, todos os direitos administrativos cautelarmente suspensos”, diz Isadora.

Conforme o conteúdo do relatório, na maior parte dos casos, logo na abertura do PAD, a pessoa privada de liberdade perdeu o direito a uma série de benefícios, entre os quais, visitas extraordinárias, participação em práticas e espetáculos educativos e recreativos, como biblioteca, prática de esportes, utilização de aparelhos de rádio e televisão. Outro benefício limitado é a progressão de regime. “Mesmo com a absolvição, ainda que a pessoa tenha cumprido o tempo para fazer jus à progressão de regime, ela é prejudicada, pois, enquanto o PAD não é finalizado, ela tem esse direito suspenso, o que resulta em mais tempo de prisão. A pessoa encontra punições pelo caminho, mesmo que não tenha sido e nem vá ser condenada administrativamente ao fim desse processo”, assevera Isadora.

A equipe responsável pela pesquisa é formada por Marco Aurélio Máximo Prado (coordenador), Antônio Augusto Lemos Rausch, Isadora Cunha Rodrigues, Júlia Silva Vidal, Mariana Moulin Brunow Freitas e Nataly Aparecida Campolina.

Hugo Rafael