Pesquisa e Inovação

Professor da Arquitetura traça uma genealogia da cidade, a maior ‘invenção’ da humanidade

Em livro, Carlos Leite Brandão discute a possibilidade de que a ‘urbs’, tal qual é conhecida hoje, esteja dando lugar a algum novo tipo de aglomeração

Panorama de Jericó, na Palestina, a cidade mais antiga do mundo
Panorama de Jericó, na Palestina, a cidade mais antiga do mundo Foto: Janusz J. (CC BY-SA 3.0 Wikipédia)

Roda, escrita, dinheiro, lâmpada: nas listas das maiores invenções da história humana, é raro encontrarmos a instituição “cidade”. Essa ausência é um grande equívoco, na avaliação do filósofo Carlos Antônio Leite Brandão, professor da Escola de Arquitetura. “A Cidade foi, provavelmente, a maior invenção da humanidade”, ele afirma em Genealogia da cidade, livro que aborda os aspectos filosóficos, históricos, culturais, arquitetônicos e urbanos da cidade como instituição. A obra foi lançada recentemente pela Editora UFMG.

Para o professor, a cidade não surgiu por escolha humana, mas por necessidade: buscamos a cidade “porque somos diferentes, porque somos individualmente frágeis e desmesurados”, ele escreve. Segundo Brandão, nascemos homens e/ou mulheres, mas não exatamente “humanos”: é a cidade que, por meio da cultura de civilização em que nos insere, “‘refina’ o humano em nós”.

Essencial para a sobrevivência humana, a cidade, como instituição, remonta a cerca de cem séculos atrás, época da emergência da primeira aglomeração humana de que se tem notícia – Jericó, cidade estabelecida por volta de 7.800 Antes da Era Comum. Nessa época havia, no local, ao menos um templo e algumas casas de pedra, conforme dão conta os vestígios encontrados.

Mais tarde, por volta de 6.500 A.E.C., já havia, em torno da cidade, muros de dois metros de espessura, uma torre e pontes de nove metros de altura. Nessa época, Jericó – que fica na atual Cisjordânia, a cerca de 40 quilômetros de Jerusalém – ocupava superfície aproximada de três hectares, onde viviam algo entre 1 mil e 2 mil pessoas, que desenvolviam atividades artesanais e agricultura avançada, com irrigação e domesticação de animais.

“Pelo pouco que conhecemos de Jericó, não sei se podemos qualificá-la como uma cidade stricto sensu”, pondera o autor, que balança entre as noções de cidade e de “aldeia fortificada” para classificar esse aglomerado humano. “Contudo, me agrada vê-la, ao menos, como uma ‘aglomeração’ na qual a cidade começou a ser concebida, antes de ser parida dezenas de séculos depois”, escreve.

A Bíblia também estabelece a sua mitologia para o advento das cidades. Em Gênesis 4:16-18, atribui-se a Caim, o primeiro homem nascido do homem e da mulher, o surgimento da primeira cidade, em uma indicação da sedentarização dos mais antigos povos nômades. “E Caim tendo-se retirado de diante da face do Senhor, andou errante sobre a terra e habitou no país que está ao nascente do Éden. E Caim conheceu sua mulher, a qual concebeu e deu à luz Henoc. E edificou uma cidade, que chamou Henoc, do nome do seu filho."

A arte de edificar
O livro Genealogia da cidade está dividido em duas seções.

No “Livro I”, Carlos Leite Brandão estabelece uma “filosofia possível” da “arte de edificar” que é própria das cidades, ocasião em que explora quatro níveis dessa arte, descritos pelas chaves “cidade”, “arquitetura”, “ornamento” e “decoro”. Sobre isso, ele lembra: “edificar não é construir; edificamo-nos juntos com o edifício, o ornamento e a cidade dispostos à nossa volta para ‘habitar’”.

'Genealogia da cidade', de Carlos Antônio Leite Brandão
'Genealogia da cidade', de Carlos Antônio Leite Brandão Imagem: Reprodução de capa

A ideia é que, ao construir um objeto, uma edificação, o sujeito edificaria, simultaneamente, a si mesmo, enquanto indivíduo e cidadão; edificaria, simultaneamente, a res publica e a própria ideia de urbanidade.

Ao mesmo tempo, habitar também não seria simplesmente se alojar ou se abrigar, no entendimento do professor. Habitar, anota Carlos Leite Brandão, implica tomar posse de si e dominar-se, em autocontrole, enquanto parte de uma comunidade. “Habitar tanto o lar da casa quanto o lar da cidade e da paisagem de Gaia nos distingue dos animais mais do que o pensar”, garante.

No “Livro II”, o professor atravessa a história da cidade, propriamente, mapeando suas diferentes fases como instituição inventada por humanos para se reunirem organizadamente como corpo político e urbano. Nessa parte do volume, ele desenvolve sua reflexão por meio de seis vieses, tomados como “operadores hermenêuticos”: etimológico, antropológico, cósmico-religioso, neolítico, dramático e visível.

No âmbito das análises desse segundo livro, o professor da Escola de Arquitetura alerta: “A origem da cidade não está na aldeia, no vilarejo, na cidade pequena ou na cidadela. A cidade não é uma aldeia que aumentou de tamanho, de infraestrutura e de população. Se o fosse, eu não teria me sentido tão estranho ao andar na capital belo-horizontina com as botas trazidas dos currais de São João Nepomuceno e da rua lamacenta cortada por um córrego onde eu morei em Juiz de Fora.”

O autor acrescenta: “A cultura da cidade e a cultura do pasto são diferentes, a razão da pólis não é a do ventre e do fígado, e o tempo da urbs não obedece ao ritmo repetitivo das estações, das ordenhas e das orações.” É, pois, a especificidade da “urbs” que o teórico vai delinear nas páginas da sua investigação, que, em certa medida, dialoga com o postulado do arquiteto e teórico da arte italiano Leon Battista Alberti.

A desinvenção da cidade
No livro, uma hipótese arrojada é apresentada: a de que a cidade, tal como a conhecemos, talvez esteja sendo “desinventada” neste momento da história, de modo a dar lugar a um outro tipo de “aglomeração” humana, para o qual ainda não se encontrou um nome consensual. Não seria a primeira vez: no livro, Carlos Brandão menciona, a título de exemplo, a “desinvenção” da cidade ocorrida após o império romano e a sua “reinvenção” no medievo.

A questão, portanto, seria saber o que se colocaria no lugar das cidades contemporâneas tal como as conhecemos. “Pode ser que a barbárie soft e hi-tech que se propaga neste início do século XXI requeira uma nova maneira de estarmos juntos com os outros seres humanos e com o universo que nos cerca”, avalia o professor. Ao fazer a sua genealogia das cidades, o livro investiga essas outras possibilidades do nosso “estar junto”, sem nunca esquecer que, na edificação que fazemos das cidades e de nós mesmos, “lembrança e invenção operam sempre juntas”.

Livro: Genealogia da cidade
Autor: Carlos Antônio Leite Brandão
Editora UFMG
397 páginas | R$ 94

Ewerton Martins Ribeiro