Resgate do conceito de verdade como força normativa é crucial no combate às fake news
Tese é defendida em artigo de pesquisadores da UFMG, para quem a desinformação é causa e consequência do enfraquecimento da democracia
![Nick Youngson/Creative Commons/CC BY-SA 3.0 Alpha Stock Images Fake news é um dos assuntos a serem discutidos no Fórum de Cultura Científica da UFMG](https://ufmg.br/thumbor/iv7Oj2t4XCjitljR7kXed7x-xBA=/0x0:713x476/712x474/https://ufmg.br/storage/4/a/0/b/4a0bfa7fa1ba67801fe50f0f0633cbd5_15523206011869_1769960568.jpg)
O fenômeno contemporâneo das fake news se tornou tema de interesse para pesquisadores de diversas áreas, que se debruçam sobre ele de forma a elaborar estratégias para combater a desinformação. No artigo Fake news and the contemporary repertoire of political action, publicado recentemente na revista Dados, os professores Ricardo Fabrino e Viviane Gonçalves Freitas, do Departamento de Ciência Política (DCP), e Camilo de Oliveira Aggio, do Departamento de Comunicação Social, ambos da Fafich, juntamente com a pesquisadora Nina Fernandes, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), exploram o conceito de fake news sob a perspectiva do confronto, questionando por que as estratégias usadas para combatê-las não estão surtindo os efeitos desejados.
O artigo publicado na Dados é conceitual e abrange o tema por meio da revisão da literatura sobre desinformação, lançando a hipótese de que as fake news devem ser pensadas como práticas que compõem o repertório contemporâneo da política. Fabrino explica que as pessoas compartilham notícias falsas não apenas porque são enganadas pelas informações que recebem, mas porque o cenário político está tão radicalizado que o conceito de verdade perdeu força normativa.
“As pessoas repassam as mensagens que recebem, muitas vezes, porque, para elas, tanto faz se aquilo é verdade ou mentira. A ideia de checar a informação tem poucos efeitos, e as pesquisas atuais sobre o tema mostram que rebater fake news faz pouca diferença, ou seja, não contribui efetivamente para que as pessoas parem de compartilhá-las”, diz.
Segundo o professor, o cenário político atual tem responsabilidade no enfraquecimento da ideia de verdade na medida em que transforma o compartilhamento sistemático de informações em parte de um jogo político deteriorado. “As redes orgânicas de grupos de família nas redes sociais e nos aplicativos de troca de mensagens explicitam bem como isso ocorre. Nelas, há sujeitos que se comunicam cotidianamente em grupos que não discutem política naturalmente. Então, a informação chega, e eles simplesmente compartilham, sem nenhuma preocupação com a verificação dos fatos. Isso em um cenário em que a verdade perde força normativa e deixa de ser um valor fundamental que baliza a política e a informação.”
Antídotos para as fake news
De acordo com Fabrino, o jornalismo sempre teve papel de validação das informações, mas o cenário político radicalizado o torna cada vez mais desacreditado. “A relativização da verdade faz as pessoas deixarem de acreditar no jornalismo e em outras fontes oficiais de informação. 'Informações' passam a ser legitimadas por sua capacidade de obter endossos e visibilidade”, explica.
O pesquisador indica alguns antídotos que poderiam ajudar a combater a circulação de desinformação nos âmbitos jornalístico, profissionalizante e educacional. As estratégias jornalísticas e profissionalizantes estão relacionadas aos institutos de checagem e fiscalização do que é divulgado. As educacionais, por sua vez, referem-se ao letramento digital: as pessoas precisam aprender que nem toda informação que recebem é verdadeira.
“Há quem defenda que a educação midiática poderia ocorrer na escola. Há quem defenda soluções tecnológicas, como restringir a rapidez da circulação da informação e a criar mecanismos técnicos para constranger o espalhamento de fake news, como a limitação do número de compartilhamentos das mensagens nos aplicativos, por exemplo. Formas automatizadas para detectar a circulação de fake news estão sendo estudadas pelos pesquisadores da Ciência da Computação”, conta Ricardo Fabrino.
O professor acrescenta que o jornalismo também deve deixar de se preocupar com o número de cliques, pois isso muda a exigência de rigor para a construção da informação por parte dos profissionais. “O jornalismo caça-cliques muda os critérios de validação do que é informação. A notícia passa a ser aquilo que circula mais e que tem mais gente compartilhando, independentemente dos critérios de validação vinculados às instituições.”
Outro antídoto para as fake news sugerido por Fabrino diz respeito às medidas legais como a retirada, por ordem judicial, de conteúdos entendidos como desinformação, além da desmonetização de canais que divulgam esses conteúdos. “É importante termos em mente que apenas a combinação das medidas legais, pedagógicas e técnicas será capaz de ajudar a reduzir a circulação de desinformação. Não se luta contra as fake news combatendo cada mentira isoladamente. Isso é enxugar gelo. É necessário mudar o cenário que possibilita o compartilhamento sistemático de desinformação", argumenta.
![Foto: Raphaela Dias Fabrino: várias medidas podem ser tomadas contra a desinformação](https://ufmg.br/thumbor/eQcve1detIQcIue3r8svXsnjWzw=/0x0:4265x2846/712x474/https://ufmg.br/storage/5/c/4/4/5c446e1d3691d6cda74cb72b8f890a14_1664800521659_1608017646.jpg)
Risco para a democracia
As reflexões que culminaram no artigo Fake news and the contemporary repertoire of political action tiveram início nas eleições presidenciais de 2018, quando o Brasil foi bombardeado por desinformação durante a campanha eleitoral. O fenômeno havia ocorrido anteriormente durante o pleito que elegeu Donald Trump, nos Estados Unidos, e na campanha que culminou no Brexit [saída da União Europeia], no Reino Unido.
Segundo Ricardo Fabrino, a circulação de fake news em períodos eleitorais ou de consultas populares está vinculada ao descrédito de instituições e da própria democracia. “É necessário um trabalho de valorização republicana das instituições e da própria democracia para que a circulação de desinformação seja entendida como um problema. Esse cenário de erosão da democracia e das instituições dá espaço para a desinformação, e isso acaba por erodir o terreno sobre o qual a democracia se sustenta. A desinformação é causa e consequência, alimentando um ciclo vicioso que torna a democracia extremamente frágil", aponta.
Fabrino conta que a mentira sempre atravessou a política, dados sempre foram usados intencionalmente para desinformar. Ele ressalta, porém, que a democracia precisa ser preservada, e, para isso, é necessário que a verdade volte a ser entendida como um valor a ser buscado. “Tudo passou a ser transformado em questão de opinião e, quando isso ocorre, a capacidade da verdade de servir como horizonte perde força. O enfraquecimento da ideia de verdade como horizonte é terreno fértil para a circulação de desinformação e para o enfraquecimento da democracia”, conclui o professor do DCP.
Artigo: Fake news and the contemporary repertoire of political action
Autores: Ricardo Fabrino Mendonça, Viviane Gonçalves Freitas, Camilo de Oliveira Aggio e Nina Fernandes dos Santos
Publicado na Revista de Ciências Sociais Dados e disponível on-line.