Universidades devem ajudar a formar os docentes da educação básica, defende Magda Soares
Em fórum on-line, professora emérita da UFMG analisou situação do ensino público no país e relatou suas vivências como educadora
“Nunca perdi de vista que, ao trabalhar com formação de professores na faculdade, eu estava, na verdade, trabalhando para os estudantes”. A afirmação, feita pela professora emérita da Faculdade de Educação (FaE) Magda Becker Soares na tarde desta terça-feira, 2, durante o 14º fórum on-line promovido pelo programa Integração Docente, resume sua visão sobre a contribuição da universidade para a qualidade do ensino básico.
O evento contou com a participação da reitora Sandra Regina Goulart Almeida e da pró-reitora de Graduação, Benigna de Oliveira, que destacaram, na abertura, as realizações do programa e a sua importância como espaço de debates.
"Este é um momento bastante propício para refletirmos sobre ensino, inclusão, aprendizagem, interação da universidade com a educação básica, enfim, questões que afetam todos nós", disse a reitora, que também se solidarizou com os familiares das mais de 225 mil vítimas da pandemia de covid-19 no Brasil.
Responsabilidade
Docente da UFMG por 40 anos e uma das maiores referências em assuntos como alfabetização, língua portuguesa e letramento, Magda criticou o estado da educação básica pública no Brasil, citando o mau desempenho de estudantes em exames como o Enem e as baixas colocações do país em rankings internacionais de avaliação de ensino.
A professora defendeu que a universidade, como instituição responsável por formar professores, deve oferecer sua contribuição para melhorar esses resultados. “Devemos pensar sempre em nossa responsabilidade, não só em relação à formação dos nossos alunos universitários, mas também no que se refere à formação daqueles que esses alunos, tornando-se professores, vão formar. E eles têm fracassado nisso”, alertou.
Ela também condenou o abandono de muitas escolas durante a pandemia, especialmente as municipais de cidades pequenas, que dispõem de menos recursos financeiros, e de grupos socialmente vulneráveis, como comunidades ribeirinhas. O ensino remoto tem sido dificultado ou mesmo inviabilizado em razão da precariedade de estrutura e ferramentas tecnológicas. Levantamento feito pela Unicef, em parceria com o Instituto Claro, indicou que cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes não tiveram qualquer tipo de atividade escolar até outubro de 2020. “Foi um ano perdido. A pesquisa mostra a progressiva evasão de alunos e consequente aumento da desigualdade, que já é vergonhosa neste país", lamentou Magda Soares.
Vivências necessárias
Apelidada carinhosamente de “repositório histórico da UFMG” por colegas e ex-alunos, por ter presenciado ou participado de marcos como a federalização da instituição, em 1949, e a criação da FaE, em 1968, a professora acredita que o começo da desvalorização da carreira docente deu-se com as reformas propostas pela ditadura militar no fim da década de 1960 e começo dos anos 1970.
“Até então, as relações entre o ensino superior e a educação básica eram bastante integradas. As faculdades de filosofia eram voltadas especificamente para preparar professores para a educação básica.”
Essas unidades abrigavam departamentos de todas as áreas, de idiomas à história natural, como eram chamadas as ciências biológicas, e foram substituídas por institutos, escolas e faculdades. Com isso, a formação de docentes foi relegada a segundo plano. Segundo ela, é cada vez menor o número de graduandos interessados na licenciatura, e as disciplinas de didática e de educação, ofertadas agora pela FaE, transformaram-se em complemento, deixando de cumprir papel central nos currículos dos cursos.
O fato das seleções para docentes universitários valorizarem mais as titulações do que a experiência em sala de aula e a falta de familiaridade de muitos educadores com a rede pública também afetam a qualidade do ensino. “Não basta conhecer o conteúdo. O professor tem que conhecer o contexto em que o ensino se organiza, a organização de uma escola pública, as características das crianças e as condições de seu nível de desenvolvimento e aprendizado”, defendeu Magda Becker.
‘Fechei o Lattes’
No caso da docente, o contato com essa realidade ocorreu logo no começo de sua carreira, quando dava aulas de português para alunas do curso Normal – formação em nível de segundo grau que preparava professoras para atuar na educação infantil – em uma escola em Lagoa Santa, situada ao lado de uma favela.
"O que aconteceu comigo naquele momento foi o que eu chamo de rito de passagem. Ali, eu me deparei com aquelas professoras, com aquelas crianças, e isso me fez perceber: ‘essa é a população brasileira, esse é o povo brasileiro. São eles que precisam ter educação para reunir condições mínimas de subir na vida. Foi aí que fiz certo corte com a minha vida acadêmica: fechei meu Lattes e decidi que teria que trabalhar com formação de professores para essas crianças, logo no início da alfabetização”, relevou.
A experiência reforçou sua convicção de que universidades que querem se dedicar à formação de professores com qualidade devem investir em ações que insiram graduandos em contextos diferentes dos seus, como a residência pedagógica e o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid).
Espaço de reflexão
Idealizado em abril do ano passado, com o objetivo de oferecer suporte ao uso de recursos digitais para o ensino remoto, o programa Integração Docente tem- se firmado, na opinião da pró-reitora de Graduação, Benigna de Oliveira, como espaço de diálogo e de formação para toda a comunidade acadêmica da UFMG e para profissionais de outras instituições de ensino superior e básico.
A iniciativa promoveu, ao longo de 2020, 13 fóruns, 12 webinários e ofereceu atividades formativas a 850 professores e 600 estudantes. “Esses números, diante do tamanho da UFMG, podem parecer pequenos, mas o que vimos é que cada um que participou levou, para a sua unidade, departamento ou curso, um pouco do que vivenciou e compartilhou aqui e começou a multiplicar os temas discutidos nesses encontros”, argumentou.
Interessados em opinar sobre as ações e contribuir para a programação de 2021 podem responder à pesquisa de avaliação até sexta-feira, 5 de fevereiro.
Bê-a-bá da alfabetização
Dedicada à compreensão do processo e de métodos de letramento há mais de 50 anos, Magda Becker Soares é autora de obras que figuram nas bibliografias básicas de cursos de licenciatura em todo país. A lista de livros a seguir ajuda a compreender melhor o seu pensamento sobre o universo da educação.
Linguagem e escola: uma perspectiva social: lançado em 1986, primeiro livro escrito pela professora aborda a relação entre desigualdade social e aquisição da linguagem.
Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever: a obra apresenta o método desenvolvido pela docente, com base em sua experiência com a formação de professores no município de Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Alfabetização: a questão dos métodos: o trabalho, que rendeu à autora o prêmio Jabuti de 2017 na categoria Educação e pedagogia, trata dos processos cognitivos envolvidos na alfabetização.