Acesso à água, base do direito à vida, é tema de mesa-redonda na Semana do Conhecimento
Léo Heller, autoridade mundial em recursos hídricos, alertou para a precariedade dos serviços de esgotamento sanitário
A preservação dos recursos hídricos sob as perspectivas filosófica, ambiental e social foi o tema da mesa A vida como bem maior, realizada na manhã desta quarta-feira, dia 27, como parte da programação da Semana do Conhecimento da UFMG. A conversa, que foi mediada pelo professor emérito e ex-reitor da UFMG Clélio Campolina Diniz, contou com a participação do professor da Faculdade de Medicina e coordenador do Projeto Manuelzão, Marcos Vinícius Polignano, do professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) Marcos Callisto de Faria Pereira, e do professor Léo Heller, aposentado na Escola de Engenharia e uma das maiores autoridades mundiais na área de engenharia sanitária e ambiental.
Polignano destacou que o planeta está em constante evolução e que "nós, seres humanos, somos inquilinos que estamos aqui de passagem", assim como já ocorreu com outras espécies. O professor, que trabalha com a preservação ambiental no Projeto Manuelzão, destacou que os recursos hídricos são essenciais para a conservação da vida, nosso bem mais valioso. "O feto passa nove meses dentro de uma bolsa de água, onde se desenvolve até se tornar um novo ser. Essa simbologia da água como fonte de vida só comprova o quanto esse recurso é primordial", afirmou.
O professor lembrou que a evolução humana vai além da questão genética, uma vez que os homens progrediram também nas esferas cultural, produtiva e alimentar. Segundo ele, todas essas evoluções estão relacionadas à exploração ambiental, o que pode ser bom ou ruim para o indivíduo. "Tudo que existe no ambiente e que não é natureza intacta é fruto da transformação humana", disse.
Polignano salientou que a evolução humana dividiu o mundo em dois: o do ambiente construído, que inclui as cidades, os prédios e toda a infraestrutura criada pelo homem, e o natural, ainda intocado. "Conseguimos separar esses dois mundos por meio de um modelo de consumo que se apropria do natural, devastando, degradando e consumindo o que já existia antes de nós. Trata-se de um modelo de sociedade capitalista e urbana que nos ilude, visto que acreditamos que basta construir jardins verticais e investir no urbanismo para suprir aquilo que o ambiente natural nos dá. Todos os dias descartamos seis milhões de toneladas de lixo, o que me leva a pensar se estamos em uma crise ambiental ou civilizatória", questiona.
Educação ambiental
Para Marcos Callisto Pereira, a questão ambiental precisa ser levada para as escolas. Em sua apresentação, o professor destacou a atuação do Programa de Educação Ambiental – Bioindicadores de Qualidade da Água, que, de 2013 a 2017, fez monitoramento participativo com 54 escolas do ensino básico, atuando junto a 1.810 estudantes, de 9 a 18 anos, e 155 professores.
"Os rios urbanos refletem tudo que fazemos em nossa cidade. O mais comum é não sabermos gerir as águas e usarmos esses rios sem planejamento, cuidado e consciência ambiental. A educação deve somar esforços para o desenvolvimento de uma escola cidadã, que envolva os governos local e federal, além da sociedade. Pessoas bem informadas e capacitadas exercem a cidadania e lutam pelos seus direitos, aqui incluso o direito à água."
Callisto chamou a atenção também para a expressão ciência cidadã, que faz referência ao envolvimento da sociedade em práticas científicas, possibilitando o exercício da cidadania. "É possível gerar conhecimento científico em parcerias com jovens e estudantes. Essa é uma prática que gera a consciência daqueles que estarão aqui no futuro", disse.
Saneamento é direito básico
O professor Léo Heller abordou o acesso aos recursos hídricos pelas pessoas, ressaltando que o saneamento básico envolve quatro vertentes: o abastecimento, que é o acesso à água potável, o esgotamento sanitário, que é a disposição adequada dos resíduos gerados, a drenagem urbana, que trata do manejo da água das chuvas, e o manejo dos resíduos sólidos, representado pelo descarte adequado do lixo urbano.
Segundo Heller, resolução de 2010 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) estebelece que a água é um direito humano, o que obriga o Estado a desenvolver políticas públicas que garantam esse direito. "Sem acesso à água não há vida. O direito a esse bem significa que ela deve estar disponível e acessível. Há 2 bilhões de pessoas sem acesso à água, e metade da população mundial não é beneficiada pelo esgotamento sanitário. Isso tem impacto direto sobre a saúde, o bem-estar e a dignidade das pessoas", enfatizou.
O caso brasileiro é ainda pior. No país, 45% da população não têm acesso à água, enquanto 55% não usufruem de serviços adequados de esgotamento sanitário. Esses contingentes estão concentrados em áreas rurais, comunidades indígenas e quilombolas, no Norte e Nordeste do país, o que "reflete a grande desigualdade de acesso a esse bem no Brasil. Não estamos cumprindo os direitos humanos, e, por incrível que pareça, o Brasil caminha na direção contrária à resolução deste problema".
Para exemplificar a falta de compromisso do governo brasileiro em relação ao acesso a recursos hídricos, Heller citou a aprovação da Lei Federal 14.026, de 15 de julho de 2020. A lei, que estabelece diretrizes para o saneamento básico no país, preocupa especialistas da área. "Essa lei, de inspiração neoliberal, exclui a gestão pública dos serviços de saneamento, substituindo-a pela prestação privada. Há evidências que mostram que o saneamento, quando privatizado, traz riscos aos direitos humanos em vários aspectos, pois gera aumento de tarifas, deterioramento do serviço e exclusão. A tendência mundial é oposta a essa, e muitos governos estão revertendo as privatizações, como já ocorreu em Paris, Berlim, Atlanta e Buenos Aires. O modelo de saneamento privado é ruim e não atende às populações", concluiu Léo Heller.