Coberturas especiais

Há 90 anos, decreto federal concedia autonomia à UFMG

O primeiro revés, no entanto, veio menos de um ano depois, com intervenção do governo Vargas

Obras no campus Pampulha da UFMG na década de 1960. Ao fundo, prédio da Reitoria da Universidade.
Obras no campus Pampulha da UFMG, na década de 1960; ao fundo, prédio da ReitoriaAcervo Cedecom / UFMG

O dia 22 de janeiro de 1930 passa despercebido como uma data histórica e decisiva na vida da UFMG, mas não chega a ser exagero afirmar que sua importância pode ser comparada ao próprio marco fundador da instituição (7 de setembro de 1927). Hoje, completam-se exatos 90 anos de concessão da plena autonomia à UFMG, oficializada por decreto assinado pelo então presidente Washington Luís. Como a recém-criada universidade cumpria os requisitos para a obtenção do dispositivo, o governo decidiu “outorgar à Universidade de Minas Gerais autonomia administrativa, econômica e didática, nos termos do citado". 

Decreto de 22 de janeiro de 1930 que concedeu autonomia plena à então Universidade de Minas Gerais.
Decreto de 22 de janeiro de 1930 que concedeu autonomia plena à então UMG
Livro 'História da Universidade Federal de Minas Gerais' (Vol.1), de Eduardo R. Affonso de Moraes / Acervo Cedecom UFMG

“A UFMG tem tradição de defesa da autonomia desde o seu primeiro reitor, o professor Mendes Pimentel”, conta o professor Tomaz Aroldo da Mota Santos, ele próprio reitor da Universidade de 1994 a 1998. Segundo Tomaz, a comunidade acadêmica é o principal alvo da autonomia. “O que garante a liberdade acadêmica é a autonomia da universidade”, diz o professor, justificando a importância do instituto.

Mas não foram poucas as vezes que as determinações federais se chocaram com o princípio da autonomia. Ela foi posta à prova ainda em 1930, poucos meses após o decreto de Washington Luís. Por conta da movimentação que culminou no governo provisório de Getúlio Vargas, o presidente baixou um decreto que aprovava, automaticamente e sem a realização de exames, todos os estudantes matriculados no ensino superior. O professor emérito Márcio Quintão Moreno contou essa história à TV UFMG: 

Em consequência desses acontecimentos, a Universidade de Minas Gerais sofreu intervenção federal e teve a sua autonomia cassada por Vargas, por meio do decreto 19.547, de 30 de dezembro de 1930. A situação seria normalizada apenas em 1934, quando a UMG voltou a dispor de parte de sua autonomia. Seu ensino, contudo, deveria seguir as disposições estabelecidas pelos que, à época, eram considerados “padrões federais”. 

Autonomia e repressão

A autonomia, tal qual conhecida hoje, está garantida pela Constituição Cidadã de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996. De acordo com o professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da UFMG e autor do livro Universidades e regime militar (RJ, Zahar, 2014), a Constituição configurou um quadro institucional mais democrático para as universidades. “Ao incorporar ao texto constitucional a figura da autonomia universitária, os constituintes foram coerentes com outras medidas igualmente avançadas”, argumenta.

Nesse modelo, explica Tomaz Aroldo da Mota Santos, o Estado financia as Universidades sem contrapartida. “Não há condição prévia para que as universidades sejam financiadas. O governo não pode exigir que a Universidade faça ou deixe de fazer alguma coisa para que haja o financiamento previsto na constituição.” 

Rodrigo Sá Motta: autonomia em tempos de repressão
Rodrigo Sá Motta: autonomia em tempos de repressão Arquivo pessoal

Nem sempre foi assim, principalmente nos momentos de maior repressão do regime militar. “Durante a ditadura, as universidades tiveram alguma autonomia didático-científica, mas isso não se aplicava a todas as áreas do saber”, explica o historiador Rodrigo Sá Motta. “Quanto à gestão administrativa, a interferência era ainda maior, pois agências de repressão monitoravam contratações e impunham vetos aos servidores”, ele explica. 

Caso emblemático foi a atuação, nos primeiros anos pós-golpe, do reitor Aluísio Pimenta, que enfrentou o general Carlos Luís Guedes, da Infantaria Divisória nº 4, a fim de proteger integrantes da comunidade universitária de uma investigação que pretendia descobrir supostas ações subversivas. 

Em depoimento à historiadora Maria Efigênia Lage de Resende, também vinculada à UFMG, o reitor, falecido em 2016, relembrou diversos momentos de ataque do período. “A autonomia e a dignidade da instituição se impuseram como fato aglutinador”, analisou Pimenta. “E eu buscava mantê-las a todo custo, estabelecendo um diálogo interno."

Na melhor das situações, a Universidade conseguiu realizar um “jogo de acomodação” durante o regime militar, nas palavras de Rodrigo Patto Sá Motta. “Isso em certos momentos demandava coragem”, pontua. “Reitores e diretores não poderiam fazer resistência ao Estado, até porque, indiretamente, faziam parte de suas engrenagens. Mesmo assim, tivemos dirigentes que preferiram correr riscos a colaborar com toda a pauta repressiva do período, por isso foram punidos com a aposentadoria compulsória em 1969”, conta ele, acrescentando que a UFMG foi a universidade com maior número de dirigentes expurgados naquele ano: o reitor, três diretores e um ex-reitor.

Três episódios na história

Posse de Ernesto Geisel em 1974, quarto general presidente. Na foto, da esq. para a dir., estão Hugo Banzer, Juan Maria Bordaberry, Ernesto Geisel e Augusto Pinochet. 

Posse, em 1974, de Ernesto Geisel, quarto general presidente. Na foto, da esquerda para a direita: Hugo Banzer, Juan Maria Bordaberry, Ernesto Geisel e Augusto PinochetAcervo Memorial da Democracia (Ag. O Globo)

1. Em 1974, o governo militar decretou um modelo único de formação de professores de licenciatura na área de Ciências, lembra Mauro Braga, à época professor do Departamento de Química da UFMG. Enquanto diversas universidades começavam a se adaptar para respeitar a resolução, a Instituição decidiu criar uma comissão para estudar o assunto. “E ela acabou concluindo que não era possível implantar um modelo de formação de professores adequado nos termos daquela resolução”, conta Mauro Braga, que integrou a comissão. “O Conselho Universitário então aprovou que a UFMG não iria implantar o que a resolução do Ministério determinava. E isso resultou simplesmente na derrubada da resolução 3.074 no país inteiro.”

3º Encontro Nacional de Estudantes, realizado em 1977 no Campus Saúde da UFMG.
Faixa do 3º Encontro Nacional de Estudantes, o III ENE, realizado em 1977 no campus SaúdeAcervo Cedecom / UFMG

2. Em 1977, como conta o professor Márcio Quintão Moreno, estava programado o 3º Encontro Nacional de Estudantes em Belo Horizonte. Os estudantes pediram ao então reitor, Eduardo Osório Cisalpino, permissão para acampar numa parte inacabada do Hospital das Clínicas. Deu-se então uma queda de braço entre a Reitoria, favorável ao encontro, e o interventor local, general Bandeira. A situação foi resolvida apenas com o apoio do ministro da Educação, “um homem, por incrível que pareça, de espírito menos agressivo do que seria de se esperar para um militar na época da ditadura”. Ele agiu a favor da UFMG, permitindo o acampamento dos estudantes. O Encontro, por outro lado, terminou em repressão. 

“Universidade de Minas decide extinguir EPB”, mancheta o Jornal do Brasil em 1989.
Matéria publicada pelo Jornal do Brasil em 1989Acervo Cedecom UFMG

3. Mesmo após o fim da ditadura militar, as instituições brasileiras ainda guardavam resquícios autoritários. Exemplo disso era a disciplina Estudos dos Problemas Brasileiros, a EBP, obrigatória em todos os cursos de graduação. Como noticiou o Jornal do Brasil em 1989, a “EPB tinha como objetivo enaltecer o sentimento cívico dos estudantes, defendia a doutrina da Segurança Nacional e combatia o comunismo, difundindo uma concepção da pátria que Vanessa Pinto [então pró-reitora de Graduação e, posteriormente, reitora da UFMG] define como ʽfascistaʼ”. Com base no princípio da autonomia, o Conselho Universitário decidiu extinguir a disciplina naquele mesmo ano. 


[Com esta matéria, o Portal UFMG inaugura série sobre a autonomia universitária. Nas próximas semanas, serão publicados conteúdos em textos, vídeos e áudios sobre vários aspectos que permeiam o tema: conceito, origens, evolução e ameaças no Brasil e no mundo.]  

Gabriel Araújo