Há 90 anos, decreto federal concedia autonomia à UFMG
O primeiro revés, no entanto, veio menos de um ano depois, com intervenção do governo Vargas
O dia 22 de janeiro de 1930 passa despercebido como uma data histórica e decisiva na vida da UFMG, mas não chega a ser exagero afirmar que sua importância pode ser comparada ao próprio marco fundador da instituição (7 de setembro de 1927). Hoje, completam-se exatos 90 anos de concessão da plena autonomia à UFMG, oficializada por decreto assinado pelo então presidente Washington Luís. Como a recém-criada universidade cumpria os requisitos para a obtenção do dispositivo, o governo decidiu “outorgar à Universidade de Minas Gerais autonomia administrativa, econômica e didática, nos termos do citado".
“A UFMG tem tradição de defesa da autonomia desde o seu primeiro reitor, o professor Mendes Pimentel”, conta o professor Tomaz Aroldo da Mota Santos, ele próprio reitor da Universidade de 1994 a 1998. Segundo Tomaz, a comunidade acadêmica é o principal alvo da autonomia. “O que garante a liberdade acadêmica é a autonomia da universidade”, diz o professor, justificando a importância do instituto.
Mas não foram poucas as vezes que as determinações federais se chocaram com o princípio da autonomia. Ela foi posta à prova ainda em 1930, poucos meses após o decreto de Washington Luís. Por conta da movimentação que culminou no governo provisório de Getúlio Vargas, o presidente baixou um decreto que aprovava, automaticamente e sem a realização de exames, todos os estudantes matriculados no ensino superior. O professor emérito Márcio Quintão Moreno contou essa história à TV UFMG:
Em consequência desses acontecimentos, a Universidade de Minas Gerais sofreu intervenção federal e teve a sua autonomia cassada por Vargas, por meio do decreto 19.547, de 30 de dezembro de 1930. A situação seria normalizada apenas em 1934, quando a UMG voltou a dispor de parte de sua autonomia. Seu ensino, contudo, deveria seguir as disposições estabelecidas pelos que, à época, eram considerados “padrões federais”.
Autonomia e repressão
A autonomia, tal qual conhecida hoje, está garantida pela Constituição Cidadã de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996. De acordo com o professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da UFMG e autor do livro Universidades e regime militar (RJ, Zahar, 2014), a Constituição configurou um quadro institucional mais democrático para as universidades. “Ao incorporar ao texto constitucional a figura da autonomia universitária, os constituintes foram coerentes com outras medidas igualmente avançadas”, argumenta.
Nesse modelo, explica Tomaz Aroldo da Mota Santos, o Estado financia as Universidades sem contrapartida. “Não há condição prévia para que as universidades sejam financiadas. O governo não pode exigir que a Universidade faça ou deixe de fazer alguma coisa para que haja o financiamento previsto na constituição.”
Nem sempre foi assim, principalmente nos momentos de maior repressão do regime militar. “Durante a ditadura, as universidades tiveram alguma autonomia didático-científica, mas isso não se aplicava a todas as áreas do saber”, explica o historiador Rodrigo Sá Motta. “Quanto à gestão administrativa, a interferência era ainda maior, pois agências de repressão monitoravam contratações e impunham vetos aos servidores”, ele explica.
Caso emblemático foi a atuação, nos primeiros anos pós-golpe, do reitor Aluísio Pimenta, que enfrentou o general Carlos Luís Guedes, da Infantaria Divisória nº 4, a fim de proteger integrantes da comunidade universitária de uma investigação que pretendia descobrir supostas ações subversivas.
Em depoimento à historiadora Maria Efigênia Lage de Resende, também vinculada à UFMG, o reitor, falecido em 2016, relembrou diversos momentos de ataque do período. “A autonomia e a dignidade da instituição se impuseram como fato aglutinador”, analisou Pimenta. “E eu buscava mantê-las a todo custo, estabelecendo um diálogo interno."
Na melhor das situações, a Universidade conseguiu realizar um “jogo de acomodação” durante o regime militar, nas palavras de Rodrigo Patto Sá Motta. “Isso em certos momentos demandava coragem”, pontua. “Reitores e diretores não poderiam fazer resistência ao Estado, até porque, indiretamente, faziam parte de suas engrenagens. Mesmo assim, tivemos dirigentes que preferiram correr riscos a colaborar com toda a pauta repressiva do período, por isso foram punidos com a aposentadoria compulsória em 1969”, conta ele, acrescentando que a UFMG foi a universidade com maior número de dirigentes expurgados naquele ano: o reitor, três diretores e um ex-reitor.
Três episódios na história
1. Em 1974, o governo militar decretou um modelo único de formação de professores de licenciatura na área de Ciências, lembra Mauro Braga, à época professor do Departamento de Química da UFMG. Enquanto diversas universidades começavam a se adaptar para respeitar a resolução, a Instituição decidiu criar uma comissão para estudar o assunto. “E ela acabou concluindo que não era possível implantar um modelo de formação de professores adequado nos termos daquela resolução”, conta Mauro Braga, que integrou a comissão. “O Conselho Universitário então aprovou que a UFMG não iria implantar o que a resolução do Ministério determinava. E isso resultou simplesmente na derrubada da resolução 3.074 no país inteiro.”
2. Em 1977, como conta o professor Márcio Quintão Moreno, estava programado o 3º Encontro Nacional de Estudantes em Belo Horizonte. Os estudantes pediram ao então reitor, Eduardo Osório Cisalpino, permissão para acampar numa parte inacabada do Hospital das Clínicas. Deu-se então uma queda de braço entre a Reitoria, favorável ao encontro, e o interventor local, general Bandeira. A situação foi resolvida apenas com o apoio do ministro da Educação, “um homem, por incrível que pareça, de espírito menos agressivo do que seria de se esperar para um militar na época da ditadura”. Ele agiu a favor da UFMG, permitindo o acampamento dos estudantes. O Encontro, por outro lado, terminou em repressão.
3. Mesmo após o fim da ditadura militar, as instituições brasileiras ainda guardavam resquícios autoritários. Exemplo disso era a disciplina Estudos dos Problemas Brasileiros, a EBP, obrigatória em todos os cursos de graduação. Como noticiou o Jornal do Brasil em 1989, a “EPB tinha como objetivo enaltecer o sentimento cívico dos estudantes, defendia a doutrina da Segurança Nacional e combatia o comunismo, difundindo uma concepção da pátria que Vanessa Pinto [então pró-reitora de Graduação e, posteriormente, reitora da UFMG] define como ʽfascistaʼ”. Com base no princípio da autonomia, o Conselho Universitário decidiu extinguir a disciplina naquele mesmo ano.
[Com esta matéria, o Portal UFMG inaugura série sobre a autonomia universitária. Nas próximas semanas, serão publicados conteúdos em textos, vídeos e áudios sobre vários aspectos que permeiam o tema: conceito, origens, evolução e ameaças no Brasil e no mundo.]