[Opinião] A diversidade da Parada LGBT+ de São Paulo, o 'dinheiro cor de rosa' e o nacionalismo
Coordenador do NUH/UFMG e jornalista promovem reflexão sobre fontes de financiamento e campanha de resgate de símbolos nacionais no evento
Diante da nova notícia veiculada e investigada pela Agência Pública sobre quem atualmente financia a Parada LGBT+ de São Paulo, uma agitação na consciência nos levou a reler o texto A diversidade da Parada LGBT de São Paulo e o Estado de Israel, publicado no Sexuality Policy Watch (SPW) em 2018. Nele, já convocávamos um debate sobre o que significava o apoio financeiro da prefeitura de Tel Aviv para a Parada no mesmo ano em que o cônsul de Israel, dias antes, havia marchado na fortalecida Marcha para Jesus em São Paulo e subido ao palco do evento rodeado de fiéis enrolados em bandeiras de Israel. O fato era tanto mais perturbador porque, semanas antes, Israel havia retomado bombardeios que, de novo, assassinavam crianças e adultos em Gaza. Era inevitável resgatar essa memória em junho de 2024.
O problema do financiamento
Em 2024, após quatro anos de desastre e avanço do neofascismo no Brasil, a Parada de SP é de novo interpelada em razão dos apoios que recebe. Agora vem da indústria do tabaco e afins, mais especificamente da empresa Phillip Morris. Ou seja, o tabaco LGBT+, como bem definiu o título de reportagem da Pública que investigou os apoios financeiros para a maior manifestação LGBT+ do país. Esse fato questionável coincide com o chamado da organização da Parada para uma reapropriação, pela comunidade LGBT+, dos símbolos nacionais verde e amarelo, que também produziu cenas paradoxais. Por exemplo, a imagem que circulou amplamente nas redes sociais de um participante exibindo um cartaz com os dizeres: “Deus, pátria & amor LGBT+”, dito de outro modo, uma evocação direta e acrítica do reconhecido slogan fascista.
Tais condições nos dizem que é urgente repensar o que, paulatinamente, se tornaram as Paradas LGBT+ no Brasil: a quem servem, como se organizam, quais valores promovem e por quê? Quais são os sentidos subjacentes de suas micropolíticas que vão do resgate de símbolos nacionalistas ao pinkwashing? E de suas macropolíticas de financiamento que, desde há muito, carecem de parâmetros éticos? Como sustentar um movimento político absolutamente fundamental para o alargamento da democracia sexual e da cidadania com financiamentos contaminados por guerras e tabaco?
O elemento da política do pinkwashing israelense é um exemplo entre outros, que revelam, em um contexto mais amplo de desdemocratização e expansão de autocracias bélicas, os perigos ético-políticos desse tipo de financiamento. Nesse contexto, vale mencionar, inclusive, que o governo brasileiro manifestou críticas francas ao genocídio perpetrado pelas Forças Armadas de Israel contra a população civil de Gaza e assinou a ação apresentada pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça contra o Estado de Israel. Ademais, poucos dias antes da Parada, o embaixador Frederico Meyer foi retirado de maneira definitiva de Tel Aviv, sendo nomeado representante do Brasil para a Conferência de Desarmamento da ONU. Tampouco é excessivo lembrar que o embaixador Meyer foi, em 2003, mentor da chamada Resolução Brasileira sobre Direitos Humanos e Orientação Sexual, proposição pioneira que abriu espaço definitivo para que as violações baseadas em orientação sexual e identidade de gênero fossem incorporadas aos debates do sistema internacional de direitos humanos.
No que diz respeito aos vínculos passados e presentes entre o campo LGBTQIA+ e Israel, é crucial dizer que, por dentro da própria Parada, se fizeram ouvir vozes que interrogam essas relações. Um exemplo é o bloco contra o pinkwashing que desfilou em 2024 com o lema “no Brasil e na Palestina as LGBTIs querem viver sem genocídio” e que também teve, felizmente, muita visibilidade. Mas nada sugere que a organização da Parada de SP vá responder a essas críticas ou mesmo refletir sobre a ausência de uma perspectiva interseccional no seu modo de conceber e financiar o evento que, em tese, interroga as violências e opressões.
Em 2018, era assustadora a relação promíscua com Israel pela via do chamado trio de Tel Aviv. Em 2024, o dinheiro da Phillip Morris contamina a alegria e as demandas da Parada com o gosto amargo do capitalismo tabaqueiro que há décadas resiste a medidas de regulação que permitem reduzir os efeitos de seu produto sobre a saúde. Ao reler o texto de 2018, consideramos que seu último parágrafo tem muito a dizer sobre os desafios do agora:
Será que estamos frente a uma nova forma de relação com Israel, de fato, ou essa é apenas parte de uma longa relação que, agora maquiada pelo discurso vazio da diversidade, entope de estratégias logísticas pró-Estado de Israel e contra o apoio internacional ao massacre ao povo palestino?
Mesmo que vozes críticas ao pinkwashing promovido sistematicamente pelo Estado de Israel sejam hoje muito mais numerosas e visíveis, permanece a questão: de que lado está a Parada LGBT+? Já esteve do lado do massacre e da bíblia, agora está do lado do tabaco e da destruição que se cria no seu rastro. Talvez seja a hora de interrogar com vigor e dar um basta na promíscua relação entre guerra, mercado e a luta pelos os direitos LGBT+ no Brasil. Quando assistimos e experimentamos ataques frontais ao gênero e aos direitos LGBT+ por toda parte, deveríamos refletir seriamente sobre o uso vazio do “direito à diversidade sexual” e buscar caminhos de lutas interseccionais, no sentido da defesa de nossos direitos e nossas vidas.
A ressignificação do verde e amarelo
A campanha de “resgate” de símbolos nacionais – verde e amarelo, bandeira do Brasil, camisa da seleção – fomentada pela organização do evento também deve ser objeto de reflexão sobre quais rumos estamos tomando como comunidades “minorizadas”.
Foi em seguida ao show de Madonna em Copacabana que circularam os primeiros apelos ao uso do verde e amarelo na Parada de SP. Madonna, como se sabe, dividiu o palco verde amarelo do show com Pabllo Vittar. Pabllo, aderindo ao apelo da organização, usou verde e amarelo comandando o trio principal da Parada. A adesão à convocação também foi flagrante no chão da Paulista. Milhares de pessoas não apenas usavam as cores da bandeira e as camisetas verde e amarelo como também, conforme já mencionado, carregavam cartazes evocando a gramática “patriótica” da ultradireita.
A motivação para resgatar os símbolos sequestrados pela extrema-direita foi, segundo a organização da Parada, superar a dicotomia do “nós versus eles”, o que deixa no ar uma outra pergunta: será mesmo possível superar essa dicotomia apenas recorrendo a repertórios como esse? Sobretudo quando sabemos que, ao menos desde 2018, existem no Brasil grupos de gays de direita cujo compromisso com a luta contra a opressão é bastante refutável. Há muito sabemos que pertencer à “sopa de letrinhas” não significa afinidade automática com as pautas de democracia e dos direitos sexuais em um registro de luta pela igualdade e pela liberdade não autoritária, para retomar um texto clássico de Wendy Brown (2006, 2019).
Além disso, depois de décadas de uso repetido desses signos pela extrema-direita, “ressignificar” símbolos nacionais não é uma tarefa trivial quando se trata da vida como ela é. Não basta usar verde e amarelo, repetir os slogans com ligeiras adaptações para a comunidade LGBT+. Esses repertórios não existem em um vácuo, não deixam de ser automaticamente símbolos da ultradireita quando os usamos com pequenos ajustes. Tão ou mais importante que usar e ressignificar o verde e amarelo é compreender a ambição e profundidade do projeto político que, desde há muito, tem feito uso desses símbolos.
Retornando à inquietação que nos moveu a interrogar o patrocínio da indústria do tabaco, nos perguntamos se não é também um bom momento para questionar a superficialidade de políticas de identidade que se restringem ao imagético, ao performático trivial, que não corresponde em nada ao que escreveu Judith Butler sobre os modos desestabilizadores de estar e aparecer no mundo e na política.
Artigo publicado no Sexuality Policy Watch em 11/06/2024.
* Marco Aurélio Prado é professor associado da UFMG e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) da Universidade. Nana Soares é jornalista, mestre em Gênero e Desenvolvimento pela University of Sussex e integra a equipe de pesquisa e comunicação do SPW.