Campus e Pampulha: trajetórias entrelaçadas
A história da Pampulha é a trajetória da dupla face da modernidade urbana: se, de um lado, a construção de seu conjunto arquitetônico significou desenvolvimento e progresso, de outro implicou questões como degradação ambiental, consequência do descontrole urbano ao longo da bacia hidrográfica — algo que, por sua vez, fora ensejado pelo próprio desenvolvimento da região.
É sob o signo dessa ambiguidade circular, própria da modernidade brasileira, que, no mês passado, o Conjunto Arquitetônico da Pampulha conquistou o título de Patrimônio Mundial da Humanidade, conferido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O título é concedido pela Unesco a monumentos, edifícios, trechos urbanos e ambientes naturais de importância paisagística que tenham valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. O objetivo não é apenas catalogar esses bens culturais, mas ajudar na sua identificação, proteção e preservação. Nesse sentido, o reconhecimento da Unesco surge como esperança de que sejam tomadas medidas de recuperação definitiva da bacia que dá nome à lagoa.
Em entrevista à Rádio UFMG Educativa, o professor Marcus Vinicius Polignano, coordenador do Projeto Manuelzão da UFMG, defende que a Pampulha se torne também um patrimônio ambiental:
As histórias da Pampulha e da Universidade Federal de Minas Gerais estão intimamente ligadas. Resultado de trabalho conjunto realizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, pelo paisagista Roberto Burle Marx e pelo pintor Candido Portinari, além de vários outros grandes artistas, a Pampulha foi construída e inaugurada em 1943, sob a batuta do então prefeito Juscelino Kubitschek.
No fim da década de 1940, a então Universidade de Minas Gerais (UMG) era federalizada e incorporava ao seu patrimônio territorial a área de 334 hectares onde hoje está erguido o campus Pampulha, tornando-se a maior ocupante individual da região. Um dos seus prédios mais emblemáticos, o da Reitoria, inaugurado em 1962, é um dos exemplares da chamada arquitetura pós-Pampulha. Mesmo sendo uma edificação posterior, foi projetado em diálogo com a arquitetura do conjunto.
No decorrer das décadas seguintes, a região da Pampulha e a UFMG veriam suas histórias se entrelaçarem, com grande parte da comunidade acadêmica orbitando em torno da lagoa, em razão, por exemplo, das moradias universitárias localizadas na região.
O Portal UFMG conversou com o professor Flávio Lemos Carsalade, da Escola de Arquitetura, sobre os significados da conquista. Arquiteto e urbanista, ele é autor de Pampulha, livro publicado pela coleção BH. A cidade de cada um. O professor também foi secretário regional da Pampulha e presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), além de ter orientado diversos trabalhos de pesquisa relacionados à região. Carsalade também foi o coordenador técnico do dossiê de candidatura encaminhado à Unesco.
Que avaliação o senhor faz da escolha do Conjunto Arquitetônico da Pampulha como Patrimônio Mundial da Humanidade?
Carsalade: Ela é importante sob diversos pontos de vista. Do ponto de vista histórico, é um reconhecimento significativo. É algo que se relaciona com a afirmação da identidade brasileira. A Pampulha foi construída em um tempo em que o Brasil estava buscando, como nação, a sua identidade. Do ponto de vista da arquitetura, a construção também representou a abertura de novas possibilidades de linguagem. Na época, a arquitetura mundial estava se renovando por meio do Movimento Moderno, mas este se centrava muito em bases funcionalistas e em uma racionalidade construtiva baseada no ângulo reto. Niemeyer muda esse paradigma, inovando com o uso da curva e uma plástica mais livre.
É também um reconhecimento importante sob o ponto de vista prático. Porque o dossiê elaborado para a concorrência tem duas partes. A primeira trata do aspecto histórico, do mérito, e a segunda diz respeito a um plano de gestão. Esse plano é um compromisso de investimentos, que não serão feitos diretamente pela Unesco, mas há uma agenda de investimentos e gestão compromissada com o órgão internacional. Todas as três instâncias federativas – a federal, a estadual e a municipal – se comprometeram a realizar ações. Principalmente a municipal. Além disso, haverá uma visibilidade maior, o que significa mais chance de a região atrair investimentos. A escolha abre caminhos para o turismo e para a iniciativa privada, com o surgimento de empresas interessadas em agregar sua marca à imagem da Pampulha.
Que compromissos são esses?
Carsalade: Um deles é a melhoria da qualidade da água por meio de um sistema de biorremediação, algo que já está sendo realizado. A própria Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) tem um trabalho de caça a esgotos clandestinos e está terminando uma série de redes de esgoto em torno da lagoa. Haverá também um melhor controle do desenvolvimento urbano ao longo da bacia.
O senhor acredita que a despoluição da lagoa finalmente ocorrerá?
Carsalade: O plano de gestão visa justamente estabelecer uma agenda factível para diversas medidas, e uma delas é a recuperação da lagoa. Trata-se de um problema que já está equacionado; já se sabe o que é preciso fazer. A dificuldade, no caso, é realizar efetivamente. Porque não se trata de um trabalho simples. É complexo. Não é só limpar a lagoa ou estabelecer um controle de lançamento de esgoto nas suas margens. A lagoa é o resultado da contribuição dos inúmeros córregos que a alimentam, e isso pressupõe várias coisas: controle de esgotos clandestinos, melhoria das condições dos assentamentos ribeirinhos, controle do descarte de componentes químicos pelas indústrias e coibição dos bota-foras clandestinos de sedimentos, entre outras medidas. Trata-se de uma questão que diz respeito não apenas a Belo Horizonte, pois há afluentes provenientes de Contagem. É uma poluição difusa, cujo controle é complicado. Agora, não é porque é complicado que não tem jeito de fazer.
As Olimpíadas, a Copa do Mundo e a Copa das Confederações nos lembraram recentemente de certa tendência dos governos brasileiros de não honrarem compromissos estabelecidos internacionalmente. O que pode ocorrer se as medidas previstas no plano de gestão não forem cumpridas pelos governos?
Carsalade: Bem, o título pode ser retirado. No plano de gestão, estabelece-se uma agenda de investimentos e ações, que precisam ser cumpridos. Se isso não ocorrer, o título pode, sim, ser retirado. A Unesco trabalha com denúncias e, em alguns momentos, com missões de acompanhamento.
Reportagem da Rádio UFMG Educativa discute cumprimento de metas de despoluição da lagoa, confira:
É possível que a Lagoa da Pampulha volte a sediar a prática de esportes náuticos de lazer, como quando foi criada?Carsalade: A lagoa nunca mais será um espaço amplamente liberado para esportes náuticos de lazer, natação, essas coisas. Mas é viável que, com a recuperação, o local passe a sediar eventos náuticos controlados, competições esportivas eventuais, corridas de barcos, disputas de remo, algo do gênero. O que estou querendo dizer é que você vai poder colocar a mão na água, mas não vai poder nadar. A pesca também precisará ser regulamentada.
Em homenagem à conquista do título, a TV UFMG produziu um vídeo sobre o Conjunto Arquitetônico da Pampulha:
Joia modernista
O conjunto arquitetônico da Pampulha é composto pela lagoa artificial, sua orla e o espelho de seus 18 milhões de metros cúbicos de água iniciais (estimados hoje em metade desse volume), os jardins de Burle Marx, a Igreja de São Francisco de Assis, o Museu de Arte da Pampulha (antigo Cassino), o Centro de Referência em Urbanismo, Arquitetura e Design de Belo Horizonte (antiga Casa do Baile) e o Iate Tênis Clube (antigo Iate Golfe Clube).
A programação cultural de celebração da conquista do título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Pampulha começou em julho e segue por todo o ano, segundo a Prefeitura de Belo Horizonte. Estão previstas exposições nos prédios do conjunto, visitas guiadas, seminário e aula pública, eventos esportivos e de lazer, apresentações artísticas, atividades culturais e religiosas, feira de livros.
O Brasil conta hoje com quase duas dezenas de bens reconhecidos pela Unesco como patrimônio mundial, entre eles a arquitetura moderna de Brasília, o centro histórico de Olinda e alguns bens naturais, como o Pantanal e o Parque Nacional do Iguaçu. Em Minas Gerais, são reconhecidas a cidade histórica de Ouro Preto, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, e o Centro Histórico de Diamantina.