Pesquisa e Inovação

‘É preciso enfrentar os discursos nostálgicos da ditadura’, afirma Rodrigo Patto Sá Motta

Professor da UFMG acaba de lançar obra em que reúne fatos e análises sobre o regime iniciado em 1964 e toma posição diante das atuais disputas sobre a história

Rodrigo Patto:
Patto: a ditadura não foi inteiramente superada entre nós, suas feridas ainda estão abertasLetícia Sá | Divulgação

O professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da Fafich-UFMG, enfrentou a ansiedade gerada pela pandemia escrevendo um livro. Tirou partido de conhecimento acumulado e de estudos seus em andamento para, como ele diz, “tomar posição diante das atuais disputas em torno da história da ditadura”. No recém-lançado Passados presentes – O golpe de 1964 e a ditadura militar, o historiador aborda as questões mais centrais dessa disputa e oferece informação e análise que relaciona os 20 anos do regime autoritário com o cenário atual no Brasil, em que grupos mantêm “discursos nostálgicos da ditadura”, alimentados por “versões falseadoras de nossa história recente”.

Nesta entrevista, Rodrigo Patto Sá Motta – que é doutor em História pela USP e autor, entre outras obras, de A universidade e o regime militar, finalista do Prêmio Jabuti 2015 – trata também de anticomunismo e antiesquerdismo, da necessidade de defender o conhecimento acadêmico e de formas de resistência, no passado e no presente.

Fale um pouco do processo de produção do livro e da organização dos capítulos. E de como o texto, de maneira geral, mostra a relação do período da ditadura com o quadro atual no Brasil.
Esse livro foi meu principal projeto na pandemia e me ajudou a suportar (ou a esquecer) os momentos de maior tensão e ansiedade vividos nos últimos meses. Foi, sobretudo, uma maneira de tomar posição diante das atuais disputas em torno da história da ditadura. Por isso, os capítulos foram selecionados e organizados tendo em vista a análise de algumas das questões mais centrais do debate público em relação ao tema, como a “ameaça” comunista e o golpe de 1964, visto como salvador da pátria, que eu procuro desconstruir; o caráter golpista do evento e a essência ditatorial do regime militar; o discurso (falacioso) de que na ditadura não teria havido corrupção; a participação de potências estrangeiras nos episódios da época, entre outras.

A intenção é oferecer informações e análises para que os leitores possam participar desse debate público mais bem preparados. O livro é baseado tanto em síntese de trabalhos anteriores, do autor e de outros historiadores, como reúne informações e reflexões originais, fundamentadas em pesquisas em andamento. Enfim, é um trabalho sobre a história da ditadura, pois aborda os principais processos históricos envolvidos, inclusive o declínio e o “fim” daquele regime político, mas é também um texto em diálogo com o nosso presente. Daí o título, Passados presentes, que sugere a presença da ditadura entre nós, ao mesmo tempo que pretende indicar que a maneira como estudamos aquela história é impactada por nosso presente.

Por que é crucial, ainda hoje, falar do golpe e da ditadura, e por que esses assuntos se mantiveram tão vivos nas últimas décadas?
Esses temas são fundamentais por várias razões: porque envolvem o conhecimento da nossa história recente, portanto são balizas para a formação da cidadania e para que as pessoas escolham determinadas linhas de ação no presente; porque a democracia construída ao fim da ditadura não se consolidou plenamente, por isso mesmo existem ameaças autoritárias à nossa volta, que se alimentam de um sentimento de nostalgia pela ditadura. Finalmente, é fundamental falar da história do golpe e da ditadura para valorizarmos a democracia e o respeito aos direitos humanos e sociais, valores que a ditadura corrompeu e violentou. Penso que esses temas mantêm tamanha atualidade no Brasil por todas essas razões comentadas e, principalmente, porque a ditadura não foi inteiramente superada entre nós, suas feridas ainda estão abertas, e porque infelizmente existem defensores de uma memória positiva da ditadura bastante influentes.

O que seu livro pretende combater, e o que querem os que defendem soluções autoritárias?
A intenção é que o livro contribua para enfrentar os discursos nostálgicos da ditadura, que, com frequência, divulgam versões falseadoras sobre a nossa história recente, algumas vezes resvalando no negacionismo. Falamos em negacionismo quando alguém divulga pontos de vista que negam conhecimentos bem estabelecidos, ou seja, baseados em evidências científicas ou provas documentais, e sustenta tais posições com base apenas em opiniões passionais. No campo da História, encontramos, além do negacionismo propriamente dito, narrativas que constroem versões falseadoras sobre eventos e processos sociais por meio da distorção das evidências disponíveis.

No livro, procuro mostrar, por exemplo, por que são falsos os discursos que negam que em 1964 ocorreu um golpe e que o regime político daí derivado foi uma ditadura. Nesse caso, não se trata apenas de uma polêmica acadêmica, um conflito sobre a interpretação mais correta acerca das evidências documentais e dos testemunhos de que dispomos para compreender o passado recente. Está em jogo também o nosso presente, que com isso se mostra profundamente enredado com o passado. Portanto, o aspecto mais grave dessa questão é que os defensores de uma memória positiva sobre o golpe e da ditadura estão, na verdade, pavimentando o caminho para outro regime autoritário, na medida em que divulgam imagens favoráveis sobre o período em que o Brasil viveu sob uma ditadura militar.

Livro foi escrito durante a pandemia
Livro foi escrito durante a pandemia Divulgação

Por que é tão importante para alguns grupos a anulação da produção acadêmica sobre esse tema e outros correlatos?
Uma das minhas fontes de inspiração para escrever o livro reside exatamente nesse ponto. Acho que é necessário que os historiadores acadêmicos respondam a esses discursos ameaçadores, que procuram nos fazer calar, e, por outro lado, tentam fazer o público desconfiar de nós. “Deixem para lá os historiadores”, “não confiem nos historiadores”, “não ouçam seus professores” são palavras de ordem que circulam nos discursos políticos e nas redes sociais. Elas são emitidas por políticos e líderes interessados em apagar as vozes dos historiadores. A razão essencial é que existe uma disputa para estabelecer controle ou hegemonia sobre o conhecimento da história e sobre sua divulgação pública. Grupos da direita autoritária têm atuado para divulgar visões sobre a história de acordo com suas preferências, por meio não só de livros e posts, mas também da produção de material audiovisual. Eles buscam restabelecer uma historiografia tradicional, construída no século 19, que incluía apenas os grupos de elite e seus interesses, excluindo as outras parcelas da população, ou representando os setores populares em tonalidades míticas (um exemplo é o argumento sobre as três raças que harmonicamente teriam formado o Brasil).

Assim, os divulgadores atuais desse tipo de história buscam restabelecer a visão de uma nação harmônica, não apenas do ponto de vista racial, mas também social, escondendo com isso os conflitos e as diferenças. A ofensiva contra historiadores acadêmicos (e profissionais universitários em geral) se deve ao fato de que se trata de pessoas capazes de opor-se a tais discursos e mostrar por que são falseadores e equivocados.

Qual o papel do anticomunismo e do antiesquerdismo “viscerais”, como você diz? Por que seduzem tanto certos setores e por que estão tão acesos nas redes sociais?
O sufixo “anti” indica movimentos políticos ou sociais que rejeitam visceralmente determinados “inimigos”. No caso do anticomunismo, trata-se de fenômeno com raízes no século 19, mas que se tornou questão global após a Revolução Soviética de 1917, que gerou admiradores e seguidores, mas também muitos inimigos viscerais, que se dedicaram a derrotar o projeto comunista nos campos ideológico e político, usando para tanto não apenas da propaganda e recursos educacionais, como também da repressão e às vezes da guerra. Já o antiesquerdismo implica uma rejeição mais ampla das esquerdas, não apenas os comunistas, mas também os socialistas, os socialdemocratas, trabalhistas, anarquistas etc.

O que eu mostro nesse livro, e em trabalhos anteriores, é que os sentimentos e as ações inspiradas no anticomunismo e no antiesquerdismo são profundamente enraizados no Brasil e utilizados para mobilizar politicamente alguns grupos sociais, o que tem gerado grande impacto político. Os movimentos anticomunistas, que muitas vezes se comportam como ondas, ou seja, têm um fluxo marcado por momentos de alta intensidade seguidos por períodos de maior calmaria, têm sido utilizados não apenas para combater os comunistas propriamente ditos, mas também qualquer proposta de mudança social e, às vezes, mesmo projetos interessados apenas em promover a distribuição de renda. Em suma, a sensibilidade anticomunista é explorada para reprimir todo tipo de movimento social, e também para fortalecer agendas comportamentais conservadoras em defesa da tradição e contra tudo o que for considerado desviante. Daí vem a associação que certos grupos conservadores operam entre comunismo e comportamentos sexuais fora dos padrões dominantes, ou o uso de drogas.

Eu enfatizo muito nesse novo livro que esses movimentos antiesquerdistas e anticomunistas são ameaças graves à democracia e à liberdade, assim como aos direitos humanos e ao respeito à diversidade. Eles são ferramentas utilizadas em defesa de pautas conservadoras e autoritária. O maior exemplo disso é que as duas maiores ditaduras brasileiras do século 20, a do Estado Novo e a militar iniciada em 1964, foram construídas à base de discursos anticomunistas, ou seja, do argumento de que o Brasil precisava ser salvo dos vermelhos. O detalhe que não pode ser perdido aqui é que, em nome de nos proteger de “ditaduras vermelhas”, que aliás o Brasil nunca experimentou, tais forças nos submeteram a violentas ditaduras de direita.

Como pensar no apoio social ao golpe e à ditadura, na época, relacionado à aceitação do discurso autoritário hoje?
Esse é um tema fundamental e ao mesmo tempo politicamente delicado, porque a constatação do apoio social ao golpe e à ditadura pode ser manipulada para defender sua legitimidade. Mas entendo que é indispensável enfrentá-lo, por isso o tema comparece em dois capítulos do livro. Reconhecer que a ditadura teve apoio de uma parte da sociedade e contou com larga participação de civis em seus quadros dirigentes importa para compreendermos a essência daquele regime autoritário, que não foi apenas militar, mas também para refletirmos sobre a dificuldade de se construir uma verdadeira democracia no Brasil, problema muito atual. Quem sabe se enfrentarmos essa questão teremos melhores possibilidades para superar o autoritarismo, que é muito enraizado no país. Seria mais confortável dizer que toda a população recusou e resistiu à ditadura, mas não é verdade. Creio não ser difícil entender esse quadro, tendo em vista o que ocorreu no Brasil nos últimos anos, e as escolhas eleitorais de muitas pessoas em 2018. Portanto, procuro analisar no livro por que muitas pessoas apoiam o autoritarismo, quais suas motivações, e já está claro que uma delas é o anticomunismo. Mas, por outro lado, argumento que não devemos cair no exagero de achar que a ditadura foi consensual, que não teve opositores e não enfrentou resistência.

Assim, o livro aborda três diferentes tipos de atitude frente ao estado autoritário que considero as principais: adesão, resistência e acomodação (que é um tipo de posição intermediária entre os dois polos). Além disso, outras pessoas mostraram-se indiferentes em relação à situação política. Reiterando, a questão do apoio a governos e líderes autoritários é fundamentalmente (e infelizmente) atual. Quem preza a democracia precisa estar atento, e uma perspectiva histórica é indispensável para lidar com o problema.

No lançamento de Passados presentes, você abordou a resistência à ditadura. O que ela tem a ensinar sobre possíveis formas de resistência hoje?
Eu dedico uma parte do livro a discutir o conceito de resistência, que é fundamental. E entro na polêmica sobre a guerrilha, que alguns observadores não classificam como uma forma de resistência. Entendo que resistência envolve um conjunto de atos de recusa ao poder instituído, considerado ilegítimo ou opressivo por quem o rejeita. Resistir à ditadura implicava rejeitá-la integralmente e buscar meios de derrotá-la. Quem resiste a determinado regime político espera vê-lo destituído e substituído, mesmo sem ter clareza ou divergindo sobre o futuro desejado. Portanto, houve diferentes formas de resistência e diferentes objetivos da parte de quem resistia. As ações incluíam desde atos mais agudos, como a resistência armada, até formas pacíficas ou não bélicas, como a resistência cultural, sindical, estudantil, parlamentar, entre outras. Na resistência parlamentar estava envolvido o MDB, partido de oposição permitido pela ditadura, que viveu uma situação ambígua. Apenas uma parte dos emedebistas de fato resistiu ao regime – e alguns deles foram atingidos pela repressão exatamente por isso –, enquanto outro segmento do partido se acomodou à ditadura, e um grupo menor na prática apoiou o regime autoritário.

Quanto à segunda parte da sua questão, acho que podemos perceber pela história da ditadura que alguns caminhos de ação têm menor probabilidade de sucesso. Por exemplo, creio que a luta armada foi uma opção equivocada, embora extremamente corajosa e até heroica em alguns casos. E seria o mesmo hoje. Na minha opinião, o caminho para defender a democracia é a mobilização coletiva e o fortalecimento dos movimentos sociais.

Explique, por favor, a questão da posição política do autor e da abordagem ao mesmo tempo “quente” e “fria”.
Essa foi uma metáfora adotada no livro para expressar um dilema enfrentado por cientistas sociais e historiadores em geral, mas de maneira mais aguda por quem pesquisa a história recente. O trabalho acadêmico exige, por razões éticas e também científicas, que o pesquisador se distancie do seu objeto de estudo, para que seja capaz de um olhar mais criterioso, mais equilibrado. O envolvimento profundo com o tema de pesquisa pode gerar distorções no conhecimento, devido à paixão e à repulsa, entre outros sentimentos que nos afetam. Daí a imagem da frieza, que expressa bem esse almejado distanciamento. No entanto, somos seres humanos, não máquinas, e é impossível eliminar totalmente o fator subjetivo. Como seria possível estudar a nossa história recente sem ter opiniões políticas? Principalmente no presente caso, quando a história da ditadura se tornou um tema em disputa, e com as implicações autoritárias já mencionadas. Então, o objeto da pesquisa está próximo de nós também, inevitavelmente, e daí a metáfora do calor, da quentura, a história quente, ou a história (como conhecimento) feita a quente. No livro explico isso melhor, inclusive com o argumento de que, além de ser inevitável, alguma dose de envolvimento do autor com seu tema é desejável também. Mas, para resumir o ponto mais relevante, a meta é tentar combinar o quente e o frio, ou seja, o envolvimento com o tema (no meu caso, movido pela defesa da democracia), o que não deve gerar um olhar maniqueísta, incapaz de oferecer uma compreensão mais ampla e equilibrada do processo histórico.

Ficha técnica

Passado presente – O golpe de 1964 e a ditadura militar
De Rodrigo Patto Sá Motta
Editora Zahar
336 páginas | R$ 69,90 (versão impressa) e R$ 39,90 (e-book)

Itamar Rigueira Jr.