Institucional

Especialistas discutem as lições da pandemia em edição especial do ciclo ‘Tempos presentes’

Novas crises do gênero poderão ser mitigadas com revisão crítica dos avanços da ciência e revalorização da experiência comunitária

João
João Trindade: pandemias tornaram-se mais frequentes nos últimos 200 anosReprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

As pandemias não são uma excentricidade na história social e biológica humana, mas uma das constantes – de certa forma incontornáveis – dessa história. Isso não significa, contudo, que não seja possível combater essas crises com mais eficácia, minorar as suas consequências e diminuir a sua incidência. Para isso, o caminho passaria por uma revisão crítica dos avanços da modernidade propiciados pela própria ciência, pela retomada de uma perspectiva comunitária da experiência social e pela valorização dos aprendizados trazidos pelas vivências do passado.

Essas três “propostas” sintetizam as reflexões feitas na noite desta quarta-feira, 8 de setembro, pelos professores João Trindade Marques, do Instituto de Ciências Biológicas, Ana Gomes, da Faculdade de Educação, e Heloísa Starling, da Fafich, em edição especial da série de conferências Tempos presentes, promovida em comemoração aos 94 anos da UFMG. O evento, que foi transmitido pelo canal da Coordenadoria de Assuntos Comunitários (CAC) no YouTube, também marcou o início das celebrações dos 95 anos da Universidade.

“Criamos esse ciclo de conferências para pensar a tarefa da nossa Universidade, o futuro da Universidade e também o futuro do nosso país. Seu objetivo é trazer o aporte de conhecimento, de reflexão, de questionamento que se faz indispensável para a reconstrução da noção de história como tradutora da vontade humana, para orientar a nossa utopia de um tempo melhor”, disse a reitora Sandra Regina Goulart Almeida, resumindo os propósitos da série.

Aprendizado
De uma perspectiva biomédica, João Trindade Marques apresentou um panorama não apenas do que podemos aprender com a atual pandemia viral, mas do que podemos aprender com a “história das pandemias”, de um modo geral. Ao recuperar essa história, ele lembrou duas informações centrais: de um lado, o fato de que basicamente todas as epidemias causadas por vírus nos últimos 200 anos têm origem animal; de outro, o fato de que nesse período a influência do fator humano sobre a natureza se radicalizou, exacerbando a frequência e a diversidade das pandemias.

“O resultado disso é que, nos primeiros 1.800 anos do calendário cristão, houve um número de pandemias muito menor, e menos diverso, do que tivemos nos últimos 200 anos. Ou seja, temos feito algumas coisas que têm facilitado essas pandemias”, ele alertou, lembrando ainda que as pandemias de outras origens que não a viral foram mitigadas nos tempos mais recentes em razão de fatores como a melhoria das condições de higiene e da limpeza urbana e o tratamento de esgoto, que têm dificultado a transmissão das bactérias – além da descoberta dos antibióticos.

“Esse cenário, contudo, pode mudar rapidamente, com o aumento que estamos observando da resistência das bactérias aos antimicrobianos – tanto que essa é uma das grandes preocupações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para os próximos 20 anos. O que tem controlado as pandemias de bactérias nos últimos cem anos pode mudar rapidamente, então a gente também precisa estar muito atento a isso”, alertou.

Ana
Ana Gomes: aprender com quem produziu a própria existênciaReprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

Em uma explanação ao mesmo tempo técnica e didática, João Trindade listou um conjunto de influências que, impostas pela humanidade sobre a natureza, têm facilitado as pandemias virais. Entre elas, Trindade destacou a excessiva mobilidade internacional, o aquecimento global, a destruição dos habitats naturais dos animais (“o que os faz buscar novos locais e aumentar seus contatos com o ser humano”) e a urbanização crescente, que leva as pessoas a ocupar espaços onde vírus circulavam entre animais.

O biólogo também listou, como fator potencializador das pandemias, o aumento da demanda por carne, o que resultou em métodos de criação e manejo de animais em espaços mais confinados e ocasionalmente comuns entre espécies, o que, por sua vez, colabora para que haja um maior trânsito de vírus entre indivíduos e espécies, potencializando as chances de transbordamento para o ambiente humano.

História de desumanização
Ana Gomes, por sua vez, tratou da pandemia que o mundo atravessa hoje como mais uma etapa do “ciclo histórico de desumanização” vivido pelo mundo e, particularmente, pelo Brasil moderno. Em sua fala, a professora, que tem formação em antropologia, mobilizou sua experiência no exitoso trabalho de monitoramento, controle, diálogo e convívio comunitário desenvolvido por indígenas brasileiros para destacar como as sociedades ocidentais podem aprender com quem, mesmo diante de todo o desafio enfrentado, “está conseguindo existir e re-existir no momento recente”.

“Essa ideia de uma inteligência coletiva que opera a partir da comunidade – e da sua força como comunidade –, e que nós vimos desvendar-se como mecanismo fundamental de enfrentamento da pandemia [entre os Xakriabás], é para nós [ocidentais] ainda um grande desafio”, disse. Em sua opinião, o caminho para a superação de crises como a atual passa por “aprender com aqueles que souberam produzir a própria existência e recuperar a própria humanidade em meio aos processos de desumanização”.

Heloisa Starling: 'O vírus escancara a realidade'

“Em uma pandemia, um vírus não cria nada, não inventa nada: ele escancara a realidade. Ele revela nossa forma de governar, a desfaçatez das autoridades, as mentiras, as respostas, as formas de maquiar e adulterar a realidade, o silêncio – e as soluções que são encontradas. Ele escancara as desigualdades e as fraturas sociais da nossa sociedade”, disse a historiadora Heloísa Starling, dando a medida sócio-histórica da experiência vivida hoje pelo Brasil. 

Na avaliação da professora, o Brasil vive uma conjunção inédita de crises sobrepostas, e o advento da covid-19 nada mais fez que expor a profundidade e a extensão dessa crise. “Trata-se de uma conjunção em que se tem uma crise econômica muito aguda, uma crise política profunda e uma crise de saúde. É inédito isso. Só falta a crise social”, pontuou. 

Depois de recuperar, a título de comparação e exemplo didático, os principais fatos, erros e acertos relativos à gripe espanhola (mapeados sistematicamente por ela e por Lilia Schwarcz, da USP, no livro A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil), Starling fez uma análise final, em tom de manifesto, sobre a situação atual do Brasil – e sobre as possibilidades que temos de encontrar, em meio a ela, uma saída profícua para o resgate do sentido de humanidade:

Alguma coisa se perdeu e se degradou entre nós. Nós temos hoje quase 600 mil mortos, e é espantosa a impassibilidade e a frieza do presidente da República e do seu governo. Ainda mais assustadora é a displicência e a indiferença ao luto coletivo exibidos por uma fatia muito larga da sociedade brasileira. São pessoas acintosamente egoístas, que aviltam os valores e os princípios da vida em comum – a amizade, a tolerância, a solidariedade, a compaixão – e negam o sentimento de pertencimento social. O negacionismo hoje praticado pelo governo federal representa, além de uma política mortal de condução da pandemia, a negação do espaço público da república. Negar a epidemia é um modo de negar o espaço público; com isso, você nega a possibilidade de os cidadãos se organizarem para exercer a solidariedade. Uma vez eliminado o espaço comum, serão destruídas de forma muito rápida as possibilidades de serem praticados os valores da nossa vida comunitária, como solidariedade, compaixão e reciprocidade. As políticas públicas adotadas pelo governo federal na condução da pandemia revelam algo inédito: a novidade de um projeto de poder que elegeu a doença e a morte como aliados. Sem a identificação com o outro, a nossa sociedade se degrada: ela perde a noção de responsabilidade mútua, ela perde a noção de que nós compartilhamos de um destino único. Talvez esse seja um dos impactos mais dolorosos da epidemia atual: expor aos brasileiros a versão envilecida do seu próprio país.

Sandra:
A reitora Sandra Goulart, o vice, Alessandro Moreira, e a historiadora Heloisa Starling (à esquerda, no alto): crises sobrepostasReprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

Ewerton Martins Ribeiro