Arte e Cultura

Na ‘pista acadêmica’: livro aborda sociabilidade contemporânea de travestis e transexuais

Publicação do NUH homenageia Anyky Lima, importante ativista do movimento LGBT+ de Belo Horizonte que morreu em 2021

Na obra, a 'pista' é vista como ponte entre a universidade e as ruas
Na obra, a 'pista' é vista como ponte entre a universidade e as ruas Foca Lisboa | UFMG

Resultado de ampla pesquisa coordenada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da UFMG (NUH/UFMG), que trata de temas relacionados à sociabilidade travesti e transexual na contemporaneidade, o livro Travestilidades em diálogo na pista acadêmica será lançado neste sábado, 4 de junho, às 11h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi), em Belo Horizonte. 

Editado pela Autêntica, o livro integra a coleção Argos e foi organizado pelos professores Marco Aurélio Máximo Prado, da UFMG, e Rafaela Vasconcelos Freitas, da UFRGS, ambos pesquisadores do NUH/UFMG. A publicação contou com a colaboração de autores e autoras, de várias regiões do Brasil, de grande importância no campo dos estudos queer

Marco Aurélio conta que a pesquisa Direitos e violência na experiência de travestis e transexuais na cidade de Belo Horizonte: construção de um perfil social em diálogo com a população — conhecida ainda como Projeto Trans — teve início no NUH/UFMG, em 2014. “Trata-se de um dos primeiros estudos quantitativos e qualitativos do país sobre a sociabilidade de travestis. Foi desenvolvido em campo, em diálogo com travestis — que estavam nas pistas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, fazendo trabalho sexual —, com ativistas locais e também de outras partes do país, que igualmente participaram desse trabalho”, narra o pesquisador. 

Segundo Marco Aurélio, esse diálogo com muitos outros pesquisadores resultou também no tratamento de temas variados sobre a sociabilidade travesti e trans na contemporaneidade. Em 17 capítulos, 28 autores e autoras tratam de temas como saúde, trabalho e usos da cidade, entre outros, como “a discussão sobre fragmentos históricos das experiências trans, políticas públicas e violências”, enfatiza o pesquisador. O livro conta ainda com prefácio da presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson Sousa, apresentação da ativista intelectual trans da UFBA Viviane Vergueiro, que hoje representa pessoas trans em diversos órgãos internacionais, e entrevista com Liliane Anderson, consultora do NUH durante dez anos e hoje ativista no Espírito Santo. 

Viviane Vergueiro explica que as análises feitas no livro levam em conta “outras dimensões do real que operam em infâncias, escolas, metodologias, noticiários, modos de vida”, justamente porque tais dimensões têm efeitos específicos sobre travestis e pessoas trans. “Ao considerar criticamente os imaginários acerca de pessoas trans, travestis, não binárias, acredito que não se trata de meramente elaborar uma reação às limitações epistêmicas e éticas de um modelo de saúde pautado no viés da patologização (em transtornos, disforias ou incongruências), por exemplo, mas, sim, poder apreciar as dimensões de trajetória, territorialidade e temporalidade, em corpas e existências racializadas, localizadas como classe, religião, afinidades, de formas múltiplas. E também de podermos imaginar outras maneiras de conceber a saúde, a educação, as existências em coletividade – para trabalho, sociabilidades, conjugalidades – de uma população inimaginável em tantas dessas dimensões”, defende a intelectual, no texto de apresentação.

Pontes e desvios
O conceito de ponte é outro aspecto relevante trabalhado na pesquisa e na publicação, segundo o professor Marco Aurélio. Nos textos que compõem o volume, segundo o organizador, pode ser percebida a ideia da pista como uma ponte entre a universidade e as ruas. “O livro buscou construir um conectivo entre as vias das ruas e as vias acadêmicas. As pistas onde há trabalho, violência, reconhecimento, vida e morte e, ao mesmo tempo, produção de conhecimento. O livro busca, por meio de diversos temas, falar dessas pontes, da produção acadêmica de pesquisa sobre travestis nas ruas e, igualmente, da produção acadêmica feita por travestis na academia. A gente precisa entender que as pistas também são lugares de produção conceitual”, defende.

No capítulo de abertura do livro, os organizadores, Rafaela Freitas e Marco Aurélio, lembram que o percurso até a publicação “foi longo e cheio de desvios”. Em 2015, um ano após o início da pesquisa — cujos resultados quantitativos podem ser consultados no site oficial —, teve início um processo de sistematização dos dados sociodemográficos coletados, que, segundo os autores, “revelariam uma outra imagem pública sobre essas populações”. À época, narram os pesquisadores, eles começavam também a vislumbrar uma modificação, ainda que lenta, no cenário acadêmico e social, por meio das “torções provocadas pelas sujeitas e por esses saberes”.

“Agora em 2021 temos o prazer de celebrar essa trajetória compartilhando um conjunto de reflexões que nos permitem olhar para essas produções e extrapolar em muito os dados estatísticos. Comemoramos mais de uma década dessa interlocução sistemática e institucional com ativistas locais e nacionais do movimento de travestis que acionou meandros da Universidade, nos convocando a institucionalizar processos de aprendizados entre pesquisadoras, ativistas e estudantes e a assegurar direitos no âmbito acadêmico”, escrevem. 

Entre esses direitos, os autores destacam a garantia do direito ao uso de nome social na UFMG, medida que, entre outros avanços, ampliou o debate sobre a permanência de pessoas trans e travestis na universidade.

‘Professora por opinião’

A publicação é dedicada a Anyky Lima, uma das mais importantes ativistas de Belo Horizonte, que lutava pelo direito de pessoas travestis e transexuais. Anyky morreu em 14 de abril do ano passado, aos 65 anos, vítima de infarto. Expulsa pelos pais de casa, no Rio de Janeiro, aos 12 anos, Anyky viveu na capital mineira por 34 anos, onde presidiu o Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual em Minas Gerais (Cellos-MG) e exerceu a representação estadual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). A ativista atuou também como consultora da pesquisa e é classificada, pela presidente da Antra, Keila Simpson Sousa, como “senhora de todas nós”. Ela conta que Anyky gostava da vida simples, "era senhora de um amor inigualável, inclusive pelos animais", e tinha grande prazer em contar histórias. 

Anyky Lima (segunda, da esquerda para a direita), com outros integrantes do NUH
Anyky Lima (segunda, da esquerda para a direita) com outros integrantes do CDH/UFMGAcervo NUH/UFMG

"A sua existência já era, por si só, uma resistência ativista que deixaria mais adiante esse caminho aberto para muitas outras. Com isso, tornou-se um referencial para a cidade de Belo Horizonte, para o estado de Minas Gerais, para o Brasil e o mundo. Ela atravessou fronteiras. Portanto, essa homenagem premia a grande história e o imenso legado dessa senhora travesti que sabia como ninguém o lugar de onde veio e o que queria deixar para as pessoas que viessem depois dela. Era professora por opinião. Sem precisar ostentar um diploma, formou muita gente por esse Brasil afora", escreve Keila no prefácio da obra.

Livro: Travestilidades em diálogo na pista acadêmica
Organizadores: Marco Aurélio Máximo Prado (UFMG) e Rafaela Vasconcelos Freitas (UFRGS)
Editora Autêntica
R$ 59,80 (versão física) e R$ 41,90 (versão digital) / 430 páginas
Lançamento: 4 de junho de 2022, sábado, às 11h, na Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi)
Onde comprar: site do grupo Autêntica

Hugo Rafael