Opinião

[Opinião]Trajetória de inclusão: da aposta nos cursos noturnos às cotas na pós-graduação

Professora do DCP mostra como a UFMG diversificou, ao longo de quase duas décadas, a composição de seu alunado

Atividade da formação transdisciplinar em Relações Étnico-raciais ofertada pela UFMG:
Atividade da formação transdisciplinar em Relações Étnico-raciais ofertada pela UFMG, desdobramento acadêmico das políticas de ações afirmativasLucas Braga | UFMG

Desde o início dos anos 2000, havia um entendimento compartilhado na comunidade da UFMG sobre a necessidade de adotar políticas para maior inclusão, porém faltava consenso quanto aos meios. Diversos gestores temiam uma deterioração da excelência acadêmica e viam a reserva de vagas como uma ameaça ao mérito como critério de seleção; outros rejeitavam ações afirmativas de cunho racial por acreditarem que as desigualdades no ensino superior tivessem origem nas desigualdades de renda e de trajetória escolar (Gonzaga, 2017; Colen e Jesus, 2018).

Nesse impasse, a UFMG apostou, na maior parte dos anos 2000, na expansão das vagas noturnas como estratégia para incluir as camadas mais pobres da população e os estudantes negros. Todavia, foi somente a partir de 2009, com recursos do Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, criado pelo Decreto 6.096/2007), que a Universidade pôde ampliar substantivamente suas ofertas.

As ações afirmativas no acesso à UFMG iniciaram-se com um sistema de bônus na seleção para ingresso em 2009. Até então, existiam ações de inclusão social, mas não de cunho racial. Destacam-se duas frentes: a assistência estudantil, em operação desde 1929, apenas dois anos após a fundação da Universidade, e o programa de isenção da taxa do vestibular para candidatos que comprovassem incapacidade de assumir essa despesa, existente desde 1971 (UFMG, 2008, p. 82). A implantação de políticas afirmativas de cunho racial foi tardia na UFMG em relação a outras instituições, como UnB (2004), Unicamp (2005) e UFSC (2008).

Vigente de 2009 a 2012, o bônus adicionava 10% à nota no vestibular de candidatos egressos de escolas públicas; entre eles, pretos e pardos eram elegíveis a mais 5%, somando um acréscimo de 15%. Antes do bônus, cerca de 70% dos ingressantes eram brancos; com o bônus e o aumento de vagas propiciado pelo Reuni, esse percentual caiu para 50% (Paula, Nonato e Nogueira, 2022).

Em 2013, iniciou-se a implementação da Lei de Cotas (Lei 12.711/2012), concluída em 2016. Ao reservarem vagas em cada curso e turno, as cotas possibilitaram a diversificação dos ingressantes em todas as ofertas: “Em síntese, a política de bônus atuou sobre as chances de acesso à UFMG, reduzindo consideravelmente as desigualdades verticais, mas preservando as desigualdades horizontais, pois o acesso por parte do público-alvo ocorreu fundamentalmente em cursos de baixa seletividade. A política de cotas, por sua vez, ao reservar o mínimo de 50% das vagas por curso, possibilitou manter uma equalização global similar à da política do bônus, ao mesmo tempo que tem reduzido de modo mais expressivo as desigualdades horizontais da instituição" (Paula, Nonato e Nogueira, 2022).

Os últimos anos têm sido marcados pelo aprimoramento de processos (exemplos: heteroidentificação da condição racial e programa permanente de vagas adicionais destinadas a candidatos indígenas) e pela reserva de vagas em todos os cursos da pós-graduação stricto sensu. Por definição do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Resolução 2/2017), desde 2018, entre 20% e 50% das vagas são reservadas a candidatos negros em cada curso de mestrado e doutorado da UFMG.

2002: primeiros estudos e mobilizações em favor de ações afirmativas
Sob a liderança da professora Nilma Lino Gomes, foi fundado o Programa Ações Afirmativas (PAA) na UFMG, um projeto de pesquisa, ensino e extensão. O PAA buscava o fortalecimento acadêmico e material de graduandos negros, sobretudo os de baixa renda, via participação em eventos científicos, grupos de estudo e projetos de pesquisa, entre outras ações. Sediado na Faculdade de Educação e ainda em atividade, o PAA foi incorporando, ao longo dos anos, pesquisadores de diversas unidades e passou a funcionar como centro de mobilização em defesa de ações afirmativas de cunho racial na Universidade (Santos, 2018).

2003-2007: aposta na inclusão via cursos noturnos
Em 2003, o Conselho Universitário decidiu que a ampliação das vagas noturnas seria o mecanismo principal de inclusão social na UFMG. Essa aposta dava continuidade a um processo de expansão iniciado na década anterior e priorizava as licenciaturas, especialmente no turno da noite. Mais de dois terços das 731 vagas criadas na UFMG de 1990 a 1999 eram noturnas (Braga, Peixoto e Bogutchi, 2000).

Em meio a incertezas sobre a possibilidade de contratação de novos professores e resistências internas a cursos noturnos, a estratégia formalizada em 2003 não se materializou. Entre 2003 e 2006, a oferta noturna cresceu em 280 vagas (de 720 para 1.000); ainda assim, mantinha-se modesta em relação ao total de vagas ofertadas, que passou de 4.422 para 4.674 no mesmo período (Braga e Peixoto, 2008).

2008-2012: expansão das vagas e adoção de bônus
Com o apoio do Reuni (decreto 6.096/2007), a UFMG expandiu em 44% o número de vagas em cursos presenciais (de 4.674, em 2007, para 6.740, em 2012), via criação de 27 cursos e aumento de vagas em cursos existentes. Das novas vagas, 69% eram noturnas (UFMG, 2018).

Em 2009, a Universidade adotou o Programa de Bônus, a primeira política afirmativa de cunho racial da UFMG. Estabelecido pelo Conselho Universitário pela Resolução 3/2008, o programa concedia bônus de 10% da nota obtida em cada etapa do vestibular para candidatos que tivessem cursado escola pública desde o quinto ano do ensino fundamental até o final do ensino médio; entre estes, autodeclarados pretos ou pardos recebiam bônus adicional de 5%, totalizando acréscimo de 15% em suas notas. O MAD (Movimento Afirmando Direitos), que congregava o PAA e outros grupos, foi bastante atuante nos meses que antecederam a aprovação do Programa de Bônus. O Movimento demandava que o Conselho Universitário pautasse o tema das ações afirmativas.

Em 2010, foi implementado o Programa Especial de Admissão de Estudantes Indígenas (Resolução 7/2009, do Conselho Universitário). De 2010 a 2013, 46 alunos indígenas ingressaram por meio desse programa de vagas adicionais nos cursos de agronomia, ciências biológicas, ciências sociais, enfermagem, medicina e odontologia.

2013-2016: implementação da Lei de Cotas e adesão ao Sisu
Em 2013, o Programa de Bônus foi substituído pela reserva de vagas para egressos do ensino médio público (com subcotas para candidatos de baixa renda e pretos, pardos e indígenas), definida pela Lei 12.711/2012 (Lei de Cotas). A UFMG aplicou apenas os percentuais mínimos de reserva exigidos pela lei: 12,5%, em 2013, 25%, em 2014, 37,5%, em 2015, e 50%, desde 2016.

A partir do processo seletivo para entrada no primeiro semestre de 2014, o vestibular foi substituído pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Assim, a alocação das vagas passou a balizar-se unicamente pela pontuação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), exceto para alguns poucos cursos que consideram também provas de habilidades específicas (dança, música e teatro, por exemplo).

2017 até o presente: consolidação de políticas afirmativas e estabelecimento de cotas na pós-graduação

Em 2017, foi implementado, de maneira permanente, o Programa de Vagas Suplementares para Estudantes Indígenas (instituído pela Resolução 15/2016, do Conselho Universitário). Cada colegiado de curso define se ofertará vagas adicionais para candidatos indígenas, via processo seletivo específico para esse público.

Em 2018, a UFMG adotou pela primeira vez subcotas na graduação para pessoas com deficiência, em obediência à Lei 13.409/2016.

Também no processo seletivo para ingresso em 2018, a Universidade passou a exigir, no momento da matrícula para vagas reservadas a pretos e pardos, uma autodeclaração racial consubstanciada, na qual o candidato discorre sobre seu pertencimento étnico-racial. Essa medida foi uma reação da UFMG ao então crescente número de denúncias de fraudes na autodeclaração racial. Adicionalmente, desde a seleção para ingresso em 2019, a Universidade realiza procedimento de heteroidentificação desses candidatos, em que são avaliados seus caracteres fenotípicos para aferição da condição racial declarada.

Desde 2018, no mínimo 20% e no máximo 50% das vagas ofertadas pelos cursos de pós-graduação stricto sensu são reservadas a candidatos negros, conforme a Resolução  2/2017, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. A mesma resolução determina que esses cursos ofereçam ao menos uma vaga suplementar para indígenas e uma vaga suplementar para pessoas com deficiência.

[Artigo originalmente publicado em 4 de agosto de 2022, no jornal Nexo; neste link também está disponível a bibliografia usada como referência em sua produção]

Ana Paula Karruz | Professora do Departamento de Ciência Política da UFMG