Pesquisa e Inovação

Quando o autismo e a transgeneridade se encontram no Twitter

Pesquisadora da Comunicação reflete, em seu mestrado, sobre os diálogos afetivos que construiu na rede social com pessoas que, assim como ela, são trans e autistas

Sophia: vivência pessoal refletida na pesquisa
Sophia: vivência pessoal refletida na pesquisa Arquivo pessoal

A identidade de gênero, o paradigma da neurodiversidade no Transtorno de Espectro Autista (TA) e a interseccionalidade entre autismo e transgeneridade são os temas abordados na dissertação A interseccionalidade entre autismo e transgeneridade: diálogos afetivos no Twitter, defendida no mês passado no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG. A dissertação é resultado da pesquisa da jornalista, youtuber, transgênera e autista Sophia Silva de Mendonça.

O estudo, que foi realizado no âmbito do Afetos, grupo de pesquisa focado em comunicação, acessibilidade e vulnerabilidades, é também a primeira dissertação defendida na linha de pesquisa Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades do programa. A pesquisadora buscou entender como a questão do gênero atravessa a vida das pessoas autistas. 

“Iniciei a minha transição de gênero em 2020, pouco tempo depois de ingressar no mestrado. Eu sempre tive a concepção de que eu era uma menina, então a transição foi algo natural para mim. Daí surgiu o interesse em realizar uma pesquisa em que pudesse abordar essas minhas duas faces, a da transgeneridade e a do autismo”, conta.

Sophia afirma que já tinha conhecimento de pesquisas quantitativas que mostravam que autistas têm 7,59 vezes mais probabilidade de serem transexuais que pessoas neurotípicas, ou seja, sem nenhum transtorno de funcionamento psíquico. “Como esses estudos são todos quantitativos, eu queria fazer algo mais qualitativo e etnográfico, buscando compreender o cotidiano desse grupo do qual eu faço parte e os desafios que enfrentamos”, diz.

De dezembro de 2020 a junho de 2021, a pesquisadora monitorou quatro páginas do Twitter de pessoas trans autistas, relacionando as páginas à sua vivência pessoal. Como o autismo, segundo Sophia, afeta a comunicação e a interação das pessoas que se enquadram no espectro, a escolha do Twitter deu-se com o objetivo de entender como essas pessoas usam a comunicação mediada por computador (CMC) e a internet como instrumentos de consolidação e compartilhamento da ausência e da presença da acessibilidade afetiva, ou seja, dos encontros cotidianos. Ela conta que observou as postagens públicas dos perfis selecionados, tentando perceber, por meio dos discursos das postagens, aspectos que não são facilmente observáveis pelo senso comum.

“Entender como essas pessoas lidam com a transfobia e o capacitismo em um país como o Brasil, que tem a maior taxa de mortalidade de pessoas trans no mundo, é importante para criarmos ferramentas de combate ao preconceito. E, como faço parte desse grupo, consegui trazer a minha vivência pessoal para meu trabalho”, conta.

Sophia Mensonça acrescenta que a pesquisa mostrou haver múltiplos fatores a serem considerados quando se pensa na comunicação que esses grupos realizam na internet. “Sou bem otimista e acredito que uma comunicação afetiva é facilitada para essas pessoas no ambiente virtual porque, na internet, não há os desafios da linguagem não verbal. Além disso, a comunicação afetiva mediada pelo computador traz novas possibilidades para esses grupos, que podem ter seus debates ampliados”, conclui.

Afetos: grupo realiza pesquisa com acolhimento
Integrantes do grupo Afetos, que desenvolvem pesquisas na perspectiva do acolhimento Arquivo pessoal

Acolhimento à diversidade
Segundo a professora Sônia Pessoa, do Departamento de Comunicação Social e orientadora de Sophia, a pesquisa mostrou que pessoas com deficiência e em situação potencial de vulnerabilidade podem e conseguem permanecer no ambiente acadêmico. “Sophia é a terceira pessoa com deficiência a defender um mestrado no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG. Os desafios enfrentados por elas precisam ser encarados de frente e sem filtro, pois só assim conseguiremos pôr em prática as políticas de diversidade da Universidade”, diz.

Sônia ressalta que o estudo realizado por Sophia também tem relevância social, pois a pesquisadora, além de ter ingressado no programa por meio de cotas para pessoas com deficiência, realizou a sua transição de gênero durante o mestrado. “A Sophia serve de exemplo para mostrar que pessoas com deficiência podem ocupar o ambiente acadêmico com dignidade. A formação delas vai além do diploma e representa a inclusão no ambiente acadêmico. A universidade precisa estar aberta para receber todos.”

Acessibilidade afetiva
Criado pela professora Sônia Pessoa, o conceito de acessibilidade afetiva, usado na pesquisa de mestrado de Sophia Mendonça, trata da acessibilidade nos encontros cotidianos. “Pensamos a acessibilidade afetiva como o conjunto de relações cotidianas que se estabelecem a partir das relações sociais. O conceito contempla três grandes campos dessas relações: as práticas discursivas, os processos de ensino e pesquisa engajados com a inclusão e o enfrentamento, sem mistificação, das barreiras que impedem que pessoas com deficiência se sintam confortáveis em espaços públicos”, explica.

A professora afirma que essas são questões abstratas e filosóficas que precisam ser articuladas com as práticas cotidianas dos indivíduos. No campo das práticas discursivas, observa-se como palavras, expressões e conversas podem estar contaminadas por imaginários pejorativos, preconceituosos e de discriminação que excluem socialmente as pessoas com deficiência. “Há uma perspectiva capacitista, que julga a pessoa com deficiência como alguém que é menor que o outro, menos apto e com menos habilidade”, explica.

O segundo campo considerado pela acessibilidade afetiva trata das relações de trabalho no ambiente acadêmico, que, segundo Sônia Pessoa, precisam ser revistas. “Essas relações também costumam ser ancoradas na ideia capacitista e excluem as pessoas com deficiência. Não basta pesquisar, escrever e refletir sobre essas temáticas nas salas de aula e nos projetos de ensino, pesquisa e extensão. É necessário estarmos abertos para o acolhimento dessas pessoas como estudantes capazes de desempenhar as suas funções."

Por fim, o terceiro campo de estudo da acessibilidade afetiva lida com o apagamento, pela sociedade, das necessidades singulares das pessoas com deficiência. “Quando fazemos um enfrentamento que não mascara essas singularidades, mas lida com elas de modo objetivo, conseguimos propiciar que as pessoas com deficiências maximizem todas as suas potencialidades”, conclui a professora.

Dissertação: A interseccionalidade entre autismo e transgeneridade: diálogos afetivos no Twitter
Autora: Sophia Silva de Mendonça
Orientadora: Sônia Pessoa
Defesa: fevereiro de 2022, no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG

Luana Macieira