Opinião

Encruzilhadas do multilateralismo

Em artigo, Dawisson Lopes, do DCP, descreve como a atuação de Donald Trump e a ascensão da China impactam esse instrumento das relações internacionais

Bandeiras dos países filiados às Nações Unidas na sede da ONU em New York
Bandeiras dos países filiados às Nações Unidas, na sede de Genebra: multilateralismo em criseJean-Marc Ferré | ONU

O multilateralismo não existe desde sempre. Na história política da humanidade, o multilateralismo, como o conhecemos hoje, é uma criação recente. Os europeus o inventaram há 200 anos, quando o continente estava no centro do sistema internacional. Ou seja, essa instituição está na adolescência – e deve ser encorajada, nutrida, apoiada, como se faz com qualquer adolescente.    

O multilateralismo foi concebido como fórmula para lidar com as queixas e disputas da era pós-napoleônica. E, de certa forma, funcionou. O mundo experimentou um século de paz entre as grandes potências. Na prática, foi também uma boa ferramenta para enfrentar crises internacionais de saúde, como as epidemias. A cólera foi um grande perigo naqueles tempos, em meados do século 19. Outra questão abordada de forma multilateral foi a da livre navegação de mares e rios, como o Reno. Então, é possível arguir, o multilateralismo foi originalmente dedicado à cooperação de ordem técnica. Tratava-se sobretudo de “baixa política” – como no jargão dos internacionalistas.

Entretanto, o multilateralismo logo evoluiu para algo mais densamente político, em sua natureza. Na segunda metade do século 19, ganharam vida muitas iniciativas institucionais, e não demorou muito até que aparecessem os primeiros movimentos globais. No século 20, esse complexo multilateral cresceu em tamanho e força. Depois de duas guerras mundiais, os Estados Unidos e seus aliados na Europa investiram enormes volumes de recursos para erguer a chamada ordem baseada em regras – ou, como alguns vão preferir, a “ordem liberal internacional”.

Exposta a premissa do meu raciocínio, seguem algumas considerações.

Se é ponto pacífico que devemos continuar nutrindo o multilateralismo para que ele não desmorone, precisamos ter muito cuidado na atualidade. Há uma ameaça à espreita. Não me refiro à China, mas aos Estados Unidos, que, nos anos 1940, eram o principal patrocinador de organizações e instituições internacionais. Desde meados da década de 1970, contudo, os Estados Unidos têm se esquivado de iniciativas multilaterais. Essa tendência claramente se agravou com a chegada de Donald Trump ao poder, em 2017. Washington está abandonando fóruns muito importantes, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU, a Unesco e, agora, a Organização Mundial da Saúde. Até mesmo a Organização Mundial do Comércio parece ter sido posta em cerco, como alegou o jornalista americano Bob Woodward. Isso sem falar da falta de entusiasmo do governo Trump com a Otan, aliança militar do Atlântico Norte.

Chegou gente nova no pedaço. A China tornou-se um campeão do multilateralismo. Ao longo das últimas quatro décadas, o país aderiu a dúzias de organizações regionais e globais e lidera hoje quatro estruturas que pertencem ao sistema das Nações Unidas.

Mas não é só isso. Chegou gente nova no pedaço. A China tornou-se um campeão do multilateralismo. Ao longo das últimas quatro décadas, o país aderiu a dúzias de organizações regionais e globais e lidera hoje quatro estruturas que pertencem ao sistema das Nações Unidas – as que cuidam de telecomunicações, aviação civil, agricultura e alimentação e desenvolvimento industrial. Ainda está na memória o discurso do líder chinês Xi Jinping, no Fórum Econômico Mundial de Davos, em que ele conclamou o mundo a comprometer-se com uma ordem apoiada nos preceitos liberais. A adesão da China ao complexo institucional do pós-segunda guerra não impediu que Pequim criasse seu próprio “mundo multilateral”. A Organização para a Cooperação de Xangai, o Brics e o Banco de Desenvolvimento da Ásia compõem esse esforço liderado pela China.

Vamos a algum contexto, pensando na pandemia de covid-19. Minha impressão é a de que a “baixa política” está se transformando em “alta política”. A saúde e o meio ambiente desfrutam de mais e mais centralidade e começaram a ser tratados, de forma inédita, como preocupações globais. A razão é simples e direta: se antes esses temas estavam distantes de nossas vidas cotidianas, agora eles se tornaram questões de vida ou morte, literalmente, na medida em que afetam diretamente nossas perspectivas de bem-estar e sobrevivência. O multilateralismo precisa se adaptar.

E qual o lugar do Brasil nesse grande quadro? Temo que não estejamos numa posição confortável. O Brasil foi um promotor ativo do multilateralismo desde o século 19. E foi assim até 2019, quando Brasília decidiu “recriar” seus alicerces diplomáticos. O governo brasileiro abraçou o antiglobalismo como lema e reorientou sua política externa segundo a cartilha de Donald Trump. Como disse o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, “não queremos mais ser os campeões do multilateralismo”.

Isso gera um problema sério. Qualquer concerto multilateral que aspire a ter cobertura global precisa incluir o Brasil. E o Brasil, que corresponde à metade da América do Sul, recusa-se a jogar o jogo. Ora: isso não é apenas uma questão brasileira; traz óbvias consequências para o resto do mundo. A ver o que o futuro reserva, e resta esperar pelo melhor.

Texto apresentado, originalmente, no seminário on-line The reorientation of multilateral politics, organizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e pela Fundação Konrad Adenauer, em 16 de setembro último. O debate está disponível na íntegra, no YouTube:

Dawisson Belém Lopes / Professor do DCP-Fafich e diretor adjunto de Relações Internacionais da UFMG