Encruzilhadas do multilateralismo
Em artigo, Dawisson Lopes, do DCP, descreve como a atuação de Donald Trump e a ascensão da China impactam esse instrumento das relações internacionais
O multilateralismo não existe desde sempre. Na história política da humanidade, o multilateralismo, como o conhecemos hoje, é uma criação recente. Os europeus o inventaram há 200 anos, quando o continente estava no centro do sistema internacional. Ou seja, essa instituição está na adolescência – e deve ser encorajada, nutrida, apoiada, como se faz com qualquer adolescente.
O multilateralismo foi concebido como fórmula para lidar com as queixas e disputas da era pós-napoleônica. E, de certa forma, funcionou. O mundo experimentou um século de paz entre as grandes potências. Na prática, foi também uma boa ferramenta para enfrentar crises internacionais de saúde, como as epidemias. A cólera foi um grande perigo naqueles tempos, em meados do século 19. Outra questão abordada de forma multilateral foi a da livre navegação de mares e rios, como o Reno. Então, é possível arguir, o multilateralismo foi originalmente dedicado à cooperação de ordem técnica. Tratava-se sobretudo de “baixa política” – como no jargão dos internacionalistas.
Entretanto, o multilateralismo logo evoluiu para algo mais densamente político, em sua natureza. Na segunda metade do século 19, ganharam vida muitas iniciativas institucionais, e não demorou muito até que aparecessem os primeiros movimentos globais. No século 20, esse complexo multilateral cresceu em tamanho e força. Depois de duas guerras mundiais, os Estados Unidos e seus aliados na Europa investiram enormes volumes de recursos para erguer a chamada ordem baseada em regras – ou, como alguns vão preferir, a “ordem liberal internacional”.
Exposta a premissa do meu raciocínio, seguem algumas considerações.
Se é ponto pacífico que devemos continuar nutrindo o multilateralismo para que ele não desmorone, precisamos ter muito cuidado na atualidade. Há uma ameaça à espreita. Não me refiro à China, mas aos Estados Unidos, que, nos anos 1940, eram o principal patrocinador de organizações e instituições internacionais. Desde meados da década de 1970, contudo, os Estados Unidos têm se esquivado de iniciativas multilaterais. Essa tendência claramente se agravou com a chegada de Donald Trump ao poder, em 2017. Washington está abandonando fóruns muito importantes, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU, a Unesco e, agora, a Organização Mundial da Saúde. Até mesmo a Organização Mundial do Comércio parece ter sido posta em cerco, como alegou o jornalista americano Bob Woodward. Isso sem falar da falta de entusiasmo do governo Trump com a Otan, aliança militar do Atlântico Norte.
Chegou gente nova no pedaço. A China tornou-se um campeão do multilateralismo. Ao longo das últimas quatro décadas, o país aderiu a dúzias de organizações regionais e globais e lidera hoje quatro estruturas que pertencem ao sistema das Nações Unidas.
Mas não é só isso. Chegou gente nova no pedaço. A China tornou-se um campeão do multilateralismo. Ao longo das últimas quatro décadas, o país aderiu a dúzias de organizações regionais e globais e lidera hoje quatro estruturas que pertencem ao sistema das Nações Unidas – as que cuidam de telecomunicações, aviação civil, agricultura e alimentação e desenvolvimento industrial. Ainda está na memória o discurso do líder chinês Xi Jinping, no Fórum Econômico Mundial de Davos, em que ele conclamou o mundo a comprometer-se com uma ordem apoiada nos preceitos liberais. A adesão da China ao complexo institucional do pós-segunda guerra não impediu que Pequim criasse seu próprio “mundo multilateral”. A Organização para a Cooperação de Xangai, o Brics e o Banco de Desenvolvimento da Ásia compõem esse esforço liderado pela China.
Vamos a algum contexto, pensando na pandemia de covid-19. Minha impressão é a de que a “baixa política” está se transformando em “alta política”. A saúde e o meio ambiente desfrutam de mais e mais centralidade e começaram a ser tratados, de forma inédita, como preocupações globais. A razão é simples e direta: se antes esses temas estavam distantes de nossas vidas cotidianas, agora eles se tornaram questões de vida ou morte, literalmente, na medida em que afetam diretamente nossas perspectivas de bem-estar e sobrevivência. O multilateralismo precisa se adaptar.
E qual o lugar do Brasil nesse grande quadro? Temo que não estejamos numa posição confortável. O Brasil foi um promotor ativo do multilateralismo desde o século 19. E foi assim até 2019, quando Brasília decidiu “recriar” seus alicerces diplomáticos. O governo brasileiro abraçou o antiglobalismo como lema e reorientou sua política externa segundo a cartilha de Donald Trump. Como disse o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, “não queremos mais ser os campeões do multilateralismo”.
Isso gera um problema sério. Qualquer concerto multilateral que aspire a ter cobertura global precisa incluir o Brasil. E o Brasil, que corresponde à metade da América do Sul, recusa-se a jogar o jogo. Ora: isso não é apenas uma questão brasileira; traz óbvias consequências para o resto do mundo. A ver o que o futuro reserva, e resta esperar pelo melhor.
Texto apresentado, originalmente, no seminário on-line The reorientation of multilateral politics, organizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e pela Fundação Konrad Adenauer, em 16 de setembro último. O debate está disponível na íntegra, no YouTube: