Estudo da Face propõe criação de sistema de vigilância para registrar casos de ‘near miss' materno
Evento é caracterizado por disfunções orgânicas causadas ou agravadas durante a gestação ou o puerpério; elas quase levam à morte e podem deixar sequelas graves
O óbito materno é o acontecimento mais trágico relacionado ao ciclo gravídico-puerperal. De 2009 a 2019, o Brasil registrou pequena redução de óbitos – de 72 para 57,9 a cada 100 mil nascidos vivos. Nos estados onde as desigualdades socioeconômicas entre grupos populacionais são mais evidentes, como nas regiões Sul e Nordeste, esse indicador de razões de morte materna (RMM) é de 35 e 80 óbitos, respectivamente. Mas não menos graves são os milhares de casos de mulheres que quase chegam à morte durante esse ciclo – é o chamado near miss materno –, ficando com sequelas físicas, psicológicas e emocionais, muitas vezes irreversíveis.
Estudo desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Demografia da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) por Michelle Elaine Siqueira Ferreira, sob a orientação dos professores Raquel Zanatta Coutinho e Bernardo Lanza Queiroz, propõe a criação urgente de um sistema nacional de vigilância dos casos de near miss materno. Michelle Ferreira defende que o registro desses casos se somaria às estratégias que vêm sendo implementadas para a redução, até 2030, da RMM para 30 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos, conforme estabelecido pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O near miss materno, assim como o óbito, está relacionado às disfunções orgânicas experimentadas pela gestante ou puérpera até 42 dias após o término da gestação. O que diferencia um episódio do outro é o óbito -- 67% dos registros de 2009 a 2019 decorreram de causas obstétricas diretas, que são as complicações durante a gravidez, o próprio parto ou o puerpério, devido a intervenções, omissões, tratamento incorreto ou eventos resultantes desses fatores.
Apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS) já ter padronizado o conceito e os critérios diagnósticos para identificar casos de near miss materno, o Brasil ainda não consegue efetuar seus registros em sistemas de informação. Michelle Ferreira explica que um dos motivos é o fato de o país se utilizar dos critérios da Classificação Internacional de Doenças e Agravos Relacionados à Saúde (CID-10) para registros dos agravos à saúde e causas de óbitos, que alimentam o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Como o near miss materno pode ser decorrente de mais de uma causa, não existe uma classificação específica do evento na CID-10 que favoreça seu registro.
Gestão conjunta
Michelle Ferreira propõe a criação de uma ferramenta nos moldes do Sistema de Vigilância do Óbito Materno, criado em 2008, para investigar causas de morte de mulheres em idade fértil. “Esse sistema é uma boa referência porque, além de gerar dados, procura entender os fatores associados às causas dos óbitos, por meio de investigações realizadas nos serviços de saúde, prontuários e, em alguns casos, autópsia verbal com os familiares da falecida”, argumenta a pesquisadora.
“Considerando que os critérios diagnósticos do near miss materno são de fácil acesso via sumário de alta ou prontuário, os casos poderiam ser identificados e notificados pela própria equipe de saúde, e as informações, complementadas por meio de entrevista com a mulher que sobreviveu ao evento, durante a consulta puerperal a que ela tem direito, até 40 dias após o fim da gestação”, sugere a pesquisadora.
Desafios
Michelle reconhece, no entanto, que as mudanças nos protocolos em saúde exigem treinamento de equipe, investimento em tecnologia, entre outras medidas, o que demanda esforço conjunto de gestores, pesquisadores, profissionais de saúde e representantes da sociedade civil para planejamento e implementação de um sistema de tal magnitude.
Ela destaca ainda que "os aspectos relacionados à saúde materna são complexos, porque têm determinantes que extrapolam a assistência obstétrica e, mesmo de forma indireta, interferem na saúde da mulher, como a distância entre a residência e a unidade básica de saúde ou hospital, a escolaridade, a situação conjugal, a condição financeira para realização de exames não cobertos pelo Sistema Único de Saúde”. Por conta dessa complexidade, a pesquisadora reitera a necessidade de escuta da gestante ou puérpera como melhor fonte de informação para o novo sistema.
Apesar dos desafios, Michelle Ferreira acredita que o Brasil tem capacidade para avançar nessa área. Ela cita o Observatório de Saúde Materna e a expertise acumulada do Departamento de Informática do SUS e de outros órgãos de tecnologia do Ministério da Saúde como trunfos para o desenvolvimento de um sistema que contribua para aprimorar a assistência e a prevenção dos casos de near miss materno no país.
Metodologia
Durante seus estudos, que tiveram início ainda no mestrado na Face, Michelle fez ampla revisão da literatura científica sobre o tema e encontrou, especialmente nos trabalhos liderados por Nakamura-Pereira, a proposta de compatibilização dos 25 critérios diagnósticos de near miss materno (11 clínicos, oito laboratoriais e seis de manejo), padronizados pela OMS, com os códigos da CID-10, relacionados às disfunções orgânicas dos sistemas cardíaco, neurológico, hepático, renal, entre outros.
A pesquisadora utilizou essa compatibilização para identificar casos sugestivos de near miss materno nos dados de registro de internações por causas obstétricas, retirados do Sistema de Informação Hospitalar do SUS, no período de 2010 a 2019, e, com base neles, calcular a RMM para cada uma das unidades da federação.
Considerando os resultados do estudo, Michelle Ferreira defende a necessidade da implementação de um Sistema de Vigilância em Saúde Materna, complementar ao existente. O artigo foi publicado na Revista Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz com o título Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Ela assina o artigo juntamente com os seus orientadores, os professores Raquel Zanatta Coutinho e Bernardo Lanza Queiroz.