Pesquisa e Inovação

Causador da doença de Chagas tem 'consentimento' do hospedeiro

Estratégias de invasão das células são reveladas em estudos desenvolvidos no ICB

A professora Diana Bahia foi orientadora dos trabalhos,
A professora Diana Bahia foi orientadora dos trabalhos, Foto: Foca Lisboa / UFMG

Recém-descobertas, estratégias utilizadas pelo protozoário Trypanosoma cruzi, agente causador da doença de Chagas, para invadir e se instalar em células do hospedeiro são objeto de duas pesquisas publicadas em revistas de alto impacto.

"Descobrimos uma nova via de sinalização, uma forma de comunicação celular entre moléculas, na qual o parasito recruta recursos do próprio hospedeiro para auxiliar sua entrada na célula. Além disso, identificamos uma função inesperada em uma enzima do T. cruzi", resume a orientadora dos trabalhos, Diana Bahia, professora do Departamento de Biologia Geral do ICB.

Em sua dissertação, o pesquisador Alexis de Sá Ribeiro do Bonfim de Melo descreve a formação, no local de entrada do parasito na célula, de um complexo da proteína quinase D com as moléculas cortactina e actina. Nessa via de sinalização, proteínas quinases adicionam nelas próprias e em outras proteínas um grupo fosfato que ativa ou reprime funções. O processo, que ocorre nas duas primeiras horas de entrada do parasito, está registrado em imagens em movimento.

De acordo com a professora, essa via de sinalização ocorre paralelamente a algumas já descritas. "É uma descoberta relevante porque agora sabemos que, ao retirar uma dessas moléculas, poderemos interferir no estabelecimento do parasito na célula. Ao intervir em uma via, é possível afetar as demais, pois elas são cruzadas", explica a orientadora. Artigo com a descrição do processo foi publicado na revista Cellular Microbiology.

A pesquisa de mestrado de Éden Ramalho Araujo Ferreira, por sua vez, revelou que no Trypanosoma cruzi ocorre uma quebra de paradigma no comportamento da molécula mevalonato quinase, especializada em catalisar reações biológicas e conhecida por participar da síntese de colesterol ou ergosterol em fungos e alguns protozoários. "Em todos os outros organismos – de protozoários a humanos –, essa enzima fica sempre em um compartimento dentro da célula, produzindo o colesterol", explica a professora.

No T. cruzi, além dessa função clássica, a molécula é secretada para o meio externo, onde provoca a fosforilação de proteínasquinases do hospedeiro, ativando nele vias que facilitam e ampliam a invasão celular. Em testes, os pesquisadores introduziram no meio extracelular uma proteína recombinante – produzida artificialmente – similar à mevalonato quinase e observaram a ativação dessas vias. Embora a entrada do parasito na célula seja multifatorial, foi possível constatar sua internalização em número significativamente maior quando a enzima é introduzida no meio externo.

Na calada da noite
"Pode ser que algum outro organismo faça o mesmo, mas por enquanto o T. cruzi é o único em que a mevalonato quinase exerce outro papel no meio extracelular", afirma Diana Bahia. Segundo ela, enzimas que exercem uma segunda e inesperada função são classificadas na literatura como moonlighting proteins, em referência a "um trabalho, clandestino, feito na calada da noite". "Ainda não sabemos se dentro da célula ela também realiza essa atividade", diz a professora. O estudo referente à caracterização da enzima foi publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature.

Para Diana Bahia, os trabalhos reforçam a tese de que a invasão por T. cruzi envolve fatores do parasita e da célula, para estabelecimento e manutenção da infecção. "Estudei esse aspecto apenas no Trypanosoma cruzi, mas acredito que, para se estabelecer, vários patógenos intracelulares usam certos recursos da célula do hospedeiro, além dos próprios", enfatiza. A professora defende que o envolvimento patógeno/hospedeiro é semelhante ao de qualquer outra relação, com trocas e vantagens para ambos os lados.

"Há quem defenda que a relação intracelular é uma vantagem evolutiva para o patógeno. Precisamos descobrir a contrapartida para o hospedeiro, porque, se ela não existisse, o organismo mataria o invasor", argumenta. Segundo ela, estudos sugerem que o protozoário secreta enzimas que inibem no hospedeiro a proliferação celular de certos tipos de câncer. Por esse aspecto, seria considerado um ganho ter doença de Chagas.

Fenômeno semelhante ocorre com a anemia falciforme, que protege o hospedeiro contra a malária. "Creio que sempre há uma troca", enfatiza a pesquisadora, que pretende aprofundar estudos no sistema imune, para identificar as moléculas moduladas nessa nova via de sinalização ativada porT. cruzi durante o período em que o parasito permanece no hospedeiro após as duas primeiras horas de internalização.

Artigo: Trypanosoma cruzi extracellular amastigotes trigger the protein kinase D1-cortactin-actin pathway during cell invasion. Publicado na Cellular Microbiology 
Autores: Alexis Bonfim-Melo, Bianca Ferrarini Zanetti, Éden Ramalho Ferreira, Sandy Vandoninck, Sang Won Han, Johan Van Lint, Renato Arruda Mortara e Diana Bahia (2015).

Artigo: Unique behavior of Trypanosoma cruzi mevalonate kinase: A conserved glycosomal enzyme involved in host cell invasion and signaling. Publicado na Scientific Reports, do Grupo Nature 
Autores: Éden Ramalho Ferreira, Eduardo Horjales, Alexis Bonfim-Melo, Cristian Cortez, Claudio Vieira da Silva, Michel De Groote, Tiago José Paschoal Sobreira, Mário Costa Cruz, Fabio Mitsuo Lima, Esteban Mauricio Cordero, Nobuko Yoshida, José Franco da Silveira, Renato Arruda Mortara e Diana Bahia (2016).

(Ana Rita Araújo / Boletim 1951)