Pesquisa da História defende que se enfrente a memória para evitar novas investidas autoritárias
João Teófilo Silva analisou estratégias, pactos e medidas que deixaram de lado demandas como a identificação do paradeiro de desaparecidos e a punição de torturadores
Entre os anos de 1995 e 2014, o Brasil adotou uma série de políticas de reparação dos 21 anos de regime militar – reivindicadas por familiares de mortos e desaparecidos políticos, grupos como Tortura Nunca Mais e mediadas pelo Estado –, cujos conteúdos abrigam memória e verdade, mas, também, esquecimento e impunidade. Para compreender o processo dessa agenda de construção da “justiça de transição” brasileira, peculiar se comparada a experiências históricas semelhantes, o historiador João Batista Teófilo Silva desenvolveu estudo que resultou em tese de doutorado defendida no mês passado, no Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich).
As escolhas e os caminhos dos atores envolvidos nesse processo, sobretudo as elites políticas, do golpe civil-militar de 1964 até o fim da ditadura, em 1985, revelam, segundo o historiador, “estratégias de acomodação e conciliação, traços da cultura política brasileira que asseguraram a não adoção de medidas consideradas mais radicais, como a punição de violadores dos direitos humanos durante o regime”.
Esses “pactos transicionais”, selados entre as elites políticas, refletiram-se, na avaliação de João Teófilo, na incapacidade de o país sanar todas as demandas da sociedade nesse sentido, do final dos anos 1970, quando se iniciaram as lutas por anistia, até a instituição da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014).
Para João Teófilo, a Lei de Anistia de 1979 é o ponto nevrálgico da transição e da “justiça de transição”, porque ela determina os limites e contornos desses dois processos. Ele chama a atenção para o fato de que existiram a lei de 1979 e um processo mais amplo de luta por anistia geral e irrestrita que não teve incorporadas todas as suas demandas, como a identificação do paradeiro dos desaparecidos políticos e a punição dos torturadores. “Essas ausências forçaram um debate público sobre a necessidade de um ajuste de contas com o passado da ditadura, no qual grupos como Tortura Nunca Mais e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos tiveram papel muito importante”, observa o pesquisador.
Não foram integralmente aplicados no país, portanto, na visão de João Teófilo, os objetivos propostos pela “justiça de transição” – termo originário de justice in times of transition, proposto por Ruti Teitel, em 1992 –, que implica processar os violadores dos direitos humanos, revelar a verdade sobre crimes passados, reformar as instituições vinculadas de algum modo a essas violações, promover reparações às vítimas e a reconciliação.
Pactos da transição
A tese ressalta que o Estado, embora tenha reconhecido sua responsabilidade sobre os mortos e desaparecidos políticos, por meio da Lei 9.140 de 1995, e, ainda que tardiamente, tenha criado a Comissão Nacional da Verdade – que resultou da intensificação dos trabalhos da Comissão de Anistia e da criação do Programa Nacional de Direitos Humanos III, em 2010 – continua, juntamente com as Forças Armadas, adepto aos “pactos da transição”, evitando assuntos como a apuração das circunstâncias dos desaparecimentos de opositores e o julgamento de quem violou os direitos humanos.
“O Brasil sempre tendeu à conciliação e, no que se refere à ditadura, optou por revolver esse passado apenas superficialmente, sobretudo quanto às responsabilidades do Estado. Bradou-se muito o ‘nunca mais’, mas tolerou-se a impunidade. Os simpatizantes da ditadura estavam por aí e ocuparam espaço significativo no cenário político. E os setores progressistas da sociedade demoraram a perceber”, afirma o pesquisador.
João Teófilo defende o enfrentamento contundente do passado e a socialização da memória do período do regime militar como formas de “evitar que aspectos dessa cultura de pactos entre elites favoreçam novas investidas autoritárias, como as que vêm ocorrendo no atual governo”. Ele afirma que, em sua pesquisa, tentou “compreender o que foi feito no Brasil em termos de justiça de transição para buscar reparar, em distintos âmbitos, as consequências da política repressiva do regime. Diversos atores disputam essa agenda, ainda aberta no país”.
Tese: Passar o passado a limpo: memória, esquecimento, justiça e impunidade no Brasil pós-ditadura. Da Anistia à Comissão Nacional da Verdade
Autor: João Batista Teófilo Silva
Orientador: Rodrigo Patto Sá Motta