Planejamento integrado pode impulsionar ganhos na conservação de sistemas de água doce
Estudo publicado hoje na Science, com participação de professores da UFMG, propõe uso de mapas de conectividade de cursos d’água como solução para falta de dados
Planejamento que integre informações sobre os ambientes terrestres e aquáticos pode até triplicar a efetividade da conservação da biodiversidade nos ecossistemas de água doce. A afirmação traduz uma das principais conclusões de estudo realizado na Amazônia, ao longo de dois anos de coletas, por pesquisadores do Brasil, incluindo professores da UFMG, e de outros cinco países. Em artigo publicado hoje (quinta, 30), na revista Science, o grupo também propõe método que lança mão de mapas de conectividade de cursos d’água para compensar a carência de informações biológicas sobre os ecossistemas de rios e riachos.
De acordo com os professores Ricardo Solar e Rafael Leitão, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, coautores do artigo, o estudo foi motivado sobretudo pelo fato de que o planejamento sistemático de conservação da biodiversidade tradicionalmente tem enfoque somente nos ecossistemas terrestres, e não se sabe o quanto as espécies aquáticas estariam sendo protegidas “por tabela”. Além disso, a disponibilidade de dados sobre a biodiversidade de água doce é muito menor que no caso da terrestre. “Nossa hipótese era que planejar a conservação apenas com base no que se conhece sobre o ecossistema terrestre não funciona para proteger o ambiente aquático, com efeitos negativos para toda a área em questão”, afirma Solar.
No primeiro momento, por meio de análise em que os dados de planejamento terrestre e aquático foram contrastados para a mesma região, os pesquisadores constataram que as iniciativas de conservação atuais – apoiadas exclusivamente em dados sobre a vida terrestre – preservam apenas 20% da biodiversidade aquática. Eles partiram então para a simulação de um cenário marcado pela combinação de informações sobre os ecossistemas aquático e terrestre e outras de caráter socioeconômico. “Nessa situação ideal, que não é realista por causa da falta de informações suficientes, os benefícios seriam elevados em até 600%”, diz Rafael Leitão.
O grupo, então, elaborou um modelo que, para compensar a insuficiência de dados sobre os sistemas aquáticos, lança mão dos chamados mapas de conectividade dos cursos d’água em associação à biodiversidade terrestre. “Os resultados mostram que, dessa forma, é possível triplicar a proteção dos ecossistemas de água doce em relação à realidade atual, sem qualquer prejuízo para a biota terrestre”, revela Ricardo Solar, que atua no Centro de Síntese Ecológica e Conservação do ICB.
Perigos para acervo imenso
Os professores do ICB destacam que a biologia da conservação é uma ciência multidisciplinar, que se dá na interface da biologia com a política e a sociedade. É também uma “ciência de triagem”, que produz subsídios para tomadores de decisão que dispõem de poucos recursos e ferramentas. “Infelizmente, precisamos ter consciência de que parte do ambiente natural será utilizada por atividades econômicas. O custo de impedir empreendimentos como a implantação de minas ou a construção de hidrelétricas é muito alto. Por essa razão, é ainda mais importante contar com os melhores métodos e informações para recomendar a preservação das áreas prioritárias do ponto de vista ambiental”, explica Rafael Leitão, que coordena o Laboratório de Ecologia de Peixes do ICB.
Segundo os pesquisadores, a biodiversidade de água doce sofre pressões muito fortes, com ameaças de redução de populações e extinção de espécies mais significativas que nos ambientes terrestre e marinho. Nos últimos 50 anos, a perda de biodiversidade na água foi mais que o dobro da perda em terra – causada por alteração da paisagem, degradação de habitat, superexploração, introdução de espécies não nativas, mudanças climáticas e contaminação por poluentes diversos. O artigo da Science lembra que rios e outros cursos fornecem múltiplos serviços ecossistêmicos e abrigam acervo imenso de biodiversidade – cerca de 10% das espécies conhecidas, incluindo um terço dos vertebrados –, sobretudo nas regiões tropicais, onde estão cerca de 80% dos peixes dulcícolas do mundo. Esses ambientes, segundo o artigo, também são vitais para regular o clima e como fonte de água, alimento e energia para as populações humanas.
Modelo replicável
Vinculado à Rede Amazônia Sustentável, que reúne mais de cem pesquisadores brasileiros e estrangeiros, o estudo avaliou, em dois anos de trabalho de campo, mais de 1.500 espécies terrestres e aquáticas da Amazônia – peixes, libélulas, insetos aquáticos que funcionam como indicadores de qualidade da água, pássaros e plantas – e coletou dados socioeconômicos por meio de entrevistas e estatísticas, nos municípios paraenses de Paragominas e Santarém. A metodologia proposta é facilmente replicável para outras regiões, salientam os professores do ICB.
Ricardo Solar enfatiza que as características de conectividade dos sistemas fluviais têm especial relevância para as espécies de água doce. “Mostramos que, ao operar os modelos, na ausência de informações sobre ocorrência e distribuição das espécies, é possível substituí-las por dados de conectividade, subsidiando os planos de conservação para que se otimizem as estratégias e para que esses planos sejam capazes de preservar a boa saúde dos sistemas aquáticos”, afirma o professor, lembrando que a metodologia pode ser extremamente útil, por exemplo, na recuperação de áreas cujos cursos d’água foram gravemente afetados por desastres como os recentes rompimentos de barragens nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho.
Rafael Leitão afirma que “a urgência da crise de biodiversidade impõe que se deixe de ignorar a grande riqueza de espécies importantes e ameaçadas que habitam os rios e riachos brasileiros”. Segundo ele, as descobertas do grupo multinacional de pesquisadores provam que considerar o conjunto de ecossistemas e habitats gera resultados de conservação substancialmente melhores que aqueles produzidos por esforços restritos a apenas um ambiente. “Gerar os mapas de conectividade tem custo baixo, o que não é pouco em um cenário de recursos parcos. Governantes precisam de mais que apenas boa vontade. Se estão bem informados, têm mais chance de dar tiros certeiros”, acrescenta Ricardo Solar.
O trabalho uniu biólogos, matemáticos, geógrafos, engenheiros florestais e outros especialistas de universidades e institutos de pesquisa do Brasil, Reino Unido, Suécia, Suíça, Estados Unidos e Austrália.