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‘Presente e comprometida’, Maria Lúcia Malard é nova professora emérita da UFMG

Na cerimônia de outorga do título, colegas destacaram competência, solidariedade e coragem da homenageada

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Maria Lúcia Malard, entre Sandra Almeida e Campomori: 'apenas fazer arquitetura e ajudar os estudantes'
Foca Lisboa / UFMG

Às vésperas de receber o título de Professora Emérita da UFMG, Maria Lúcia Malard, da Escola de Arquitetura, poupava-se de ao menos uma preocupação: o discurso. Pretendia simplesmente agradecer à Congregação e às pessoas que compartilham com ela a alegria da homenagem. Mas acabou convencida pela irmã de que era preciso mais que isso.

“Arquitetura é assunto inesgotável, pensei. E não é de meu feitio discursar arquitetura. Tento apenas fazer arquitetura e ajudar os estudantes que têm esse mesmo interesse. Acompanho Le Corbusier, que não gostava de escrever sobre arquitetura. Preferia desenhar, porque, segundo ele, ‘o desenho não abre espaço para mentiras’”, disse a professora, homenageada nesta terça-feira, 6, no auditório da Escola.

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Maria Lúcia Malard: discurso guiado por escritores  
Foca Lisboa / UFMG

Maria Lúcia mudou de ideia sobre o discurso, mas ainda sem angústia. Apelou aos escritores que a ajudaram “com as coisas da arquitetura e da vida”. Lembrou, por exemplo, que Drummond falou do que transcende a materialidade dos espaços arquitetônicos: “A casa foi vendida com todas as lembranças/ todos os móveis, todos os pesadelos/ (...) com seu bater de portas/ (...) seus imponderáveis/ por vinte, vinte contos”.

De Gonçalves Dias, ela disse, entre outros versos, “A vida é combate/ Que os fracos abate/ Que os fortes, os bravos/ Só pode exaltar”. E imaginou que Guimarães Rosa responderia, com a voz de Riobaldo: “O correr da vida embrulha tudo./ A vida é assim: esquenta e esfria,/ (...) sossega e depois desinquieta./ O que ela quer da gente é coragem.”

Segundo Maria Lúcia, Ferreira Gullar emendaria, irônico, falando sobre liberdade: “Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena/ embora o pão seja caro/ e a liberdade seja pequena”. Ao término das citações, que incluíram ainda Machado de Assis, Cecília Meirelles e Chico Buarque, a nova professora emérita sentenciou: “Confesso que essa conversa de liberdade me assusta um pouco, pois, se falamos nela, é porque nos falta ou estamos ameaçados de perdê-la. Como diria Tavinho Moura, ‘o trem tá feio e é bem por aqui’”.

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Jupira Mendonça: lealdade institucional
Foca Lisboa / UFMG

‘Corajosamente presente’
Escolhida para a saudação a Maria Lúcia Malard, a professora Jupira Mendonça lembrou os quase 40 anos de convivência – elas se conheceram no início dos anos 80, durante o processo de criação da Associação Profissional dos Arquitetos, que deu origem ao embrião do Sindicato dos Arquitetos de Minas Gerais. “Em todos esses anos, testemunhei não apenas sua competência e capacidade de trabalho, mas também seu espírito solidário, sua retidão de caráter e sua lealdade institucional”, disse Jupira, dirigindo-se à colega e amiga.

A professora destacou o “valor inestimável” da trajetória de Maria Lúcia Malard, marcada pela dedicação à Universidade e aos estudantes e, “por consequência, à sociedade mineira e brasileira, de maneira absolutamente ética e comprometida institucionalmente”.

Jupira ressaltou ainda que, “em tempos de fragilização da universidade pública no Brasil e, por que não dizer, de ataque ao ‘fazer universitário’, Maria Lúcia permanece comprometida e presente – estimulando colegas, agregando pesquisadores, orientando pós-graduandos. Corajosamente presente.”

Progressista e generosa
Maria Lúcia Malard integra o grupo restrito de docentes que foram também discentes e servidores técnico-administrativos da UFMG, como salientou o diretor da Escola de Arquitetura, Mauricio Campomori. “Talvez daí venha uma de suas capacidades mais destacadas: a de conhecer e entender essa instituição em seus vários matizes”, disse.

Ex-aluno e parceiro de Maria Lúcia em pesquisas, projetos e equipes administrativas, Campomori definiu a colega: “para cada ideia conservadora, espere sua resposta radicalmente progressista; para cada argumento superficial ou falacioso, prepare-se para uma contestação inflamada (às vezes furiosamente inflamada); frente aos atos mais mesquinhos, sua postura é a generosidade”.

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Mauricio Campomori: 'ícone do antiatraso'
Foca Lisboa / UFMG

Segundo Campomori, não foram poucas as vezes em que, diante de divergências entre estudantes e professores, Maria Lúcia se mobilizou ao lado dos estudantes. “É porque eles são menos corporativistas e menos conservadores que vocês”, ela justificava, segundo o relato do professor, que provocou risos da plateia.

Mauricio Campomori afirmou que Maria Lúcia tem sido uma combatente na luta contra tudo o que apequena o ser humano. Nesse sentido, continuou, o título tem um significado particular no momento atual. “Crescem, de forma inquietante, o apoio a valores ultraconservadores, a negação do mundo intelectual, a sistemática e deliberada opressão ao diferente, uma inaceitável misoginia, um populismo virulento, uma intolerável privatização de tudo que deve ser público”, disse. “Esses são sinais evidentes da presença de inimigos da liberdade e, por isso mesmo, da universidade, como o autoritarismo e o fascismo.”

Para Campomori, Maria Lúcia Malard é um “ícone do antiatraso”, e homenageá-la significa “celebrar o ethos republicano e antiautoritário da UFMG e reafirmar a confiança de que todos os movimentos de retrocesso civilizatório continuarão encontrando sua antítese na resistência da Universidade”.

Impacto singular
A reitora Sandra Goulart Almeida ressaltou que Maria Lúcia Malard ilustra, de maneira talvez sem igual, os atributos dos professores eméritos da UFMG: é uma referência em seu campo de conhecimento, contribuiu intensamente para a administração da Universidade e participou quase sem interrupções de órgãos colegiados. E hoje, lembrou a reitora, sete anos após sua aposentadoria, permanece em intensa atividade na pós-graduação.

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Sandra Almeida: demandas que extrapolam o tempo presenteFoca Lisboa / UFMG

“E ela teve uma contribuição de impacto singular para a instituição: ainda na década de 1960, juntou-se à equipe que concebeu o campus Pampulha. E ainda colaborou no planejamento de outros campi pelo país, com o aporte do arcabouço conceitual aqui desenvolvido”, comentou Sandra Almeida, lembrando também que a arquiteta e professora manteve posição central no planejamento do crescimento do campus Pampulha nas décadas seguintes. “Poucas ações terão impacto tão direto, tão material, tão sutil e duradouro sobre o modo de ser desta instituição.”

De acordo com a reitora, o desafio que Maria Lúcia propõe aos jovens docentes da Escola de Arquitetura e de toda a UFMG “é o de identificar as demandas que extrapolam o tempo presente, que anteveem e que já desenham os futuros possíveis, dialogando com todos eles”.

Para Sandra, o título concedido a Maria Lúcia Malard é a forma de a UFMG pedir que ela permaneça presente e ajude a defender valores – autonomia, pensamento crítico, diversidade, liberdade de pesquisa e expressão – que definem a instituição. Ela agradeceu à nova emérita por estar integrada à “luta pelo sonho de uma universidade pública cada vez mais relevante, com um projeto sustentável de Estado, comprometida com a sociedade e o país”.

Trajetória
A saudação de Jupira Mendonça incluiu um relato sucinto da trajetória de Maria Lúcia Malard, que se aposentou em 2012. Formada em Arquitetura e Urbanismo na própria UFMG, em 1966, ela ocupou o cargo de arquiteta especialista (1969-82), até tornar-se, por concurso, docente no Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura. Dez anos depois, concluiu o doutorado na University of Sheffield (Reino Unido) e, em 1995, já era professora titular. Os estudos de pós-doutorado foram realizados na também britânica University of Warwick.

Maria Lúcia passou por vários cargos e experiências, tanto acadêmicas como administrativas, na UFMG. Dirigiu a Escola de 1994 a 1998, integrou o Conselho Universitário e o Conselho Curador da Fundep, do qual foi presidente, coordenou a elaboração da Plano Diretor do Campus Pampulha e o Projeto Campus 2000. Ainda dirigiu o Departamento de Planejamento Físico e Projetos e foi pró-reitora adjunta e pró-reitora de Planejamento, entre 2008 e 2011. Fora da Universidade, foi membro da Comissão de Avaliação da Pós-graduação da Capes e da Câmara de Assessoramento de Arquitetura e Engenharias da Fapemig.

Na Escola de Arquitetura, lembrou Jupira, Maria Lúcia participou da criação do primeiro programa de pós-graduação stricto sensu, o NPGAU, foi subcoordenadora do Colegiado e liderou a implantação do curso noturno de Arquitetura e Urbanismo. Também ajudou a criar o Laboratório Gráfico para o Ensino de Arquitetura (Lagear) e implantou laboratórios de informática que até hoje dão suporte aos cursos de Arquitetura e Urbanismo e de Design.

A professora atuou em diversos projetos de pesquisa e desenvolvimento, publicou artigos e livros e trabalhos em anais de congressos. Orientou pesquisas em todos os níveis acadêmicos, várias delas premiadas, e viu muitos de seus orientandos tornarem-se docentes da UFMG. Organizou eventos, avaliou cursos superiores e atua como parecerista em periódicos e agências de fomento. Depois de aposentada, prosseguiu em atividades de pesquisa e orientação. É líder do grupo Estúdio Virtual de Arquitetura e pesquisadora bolsista do CNPq.

Diretores em retratos
Antes da homenagem a Maria Lúcia Malard, a comunidade da Escola de Arquitetura inaugurou, na Sala da Congregação, os retratos dos quatro últimos diretores da unidade: Leonardo Barci Castriota (2002-2006), José Eustáquio Paiva (2007-2008), Flávio Lemos Carsalade (2008-2012) e Frederico de Paula Tofani (2012-2016).

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Sandra Almeida, Mauricio Campomori, Leonardo Castriota, Flávio Carsalade, Frederico Tofani e Eustáquio PaivaFoca Lisboa / UFMG