Publicação da UFMG e da PBH revela vivências da população idosa LGBT+
Mapeamento qualitativo traça perfil socioeconômico, identifica violências e discriminações e mostra as dificuldades enfrentadas por esse grupo para acessar serviços públicos
A vivência de pessoas idosas é cercada de diversas discriminações. A vivência de pessoas LGBT+ (não heterossexuais e/ou não cisgêneras) também. Quando as duas condições se unem, o preconceito é experimentado em dose dupla. No Brasil, em 2022, mais de 35 mil denúncias de maus-tratos a idosos foram registradas, segundo o Ministério dos Direitos Humanos. O país apresenta, ainda, números preocupantes em relação aos atos de violência contra as pessoas LGBT+: alta de 300% no número de denúncias de violência contra a comunidade foi registrada nos primeiros cinco meses de 2023, sendo 2,5 mil alertas de janeiro a maio deste ano e 560 de janeiro a maio do ano passado.
Um diagnóstico da população idosa LGBT+ de Belo Horizonte, que está na interseção de grupos de pessoas às quais direitos são negados, é o objetivo central de uma publicação com dados inéditos lançada pelo Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero (Diverso) da UFMG e pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Envelhecer LGBT+: histórias de vida e direitos é estruturada em oito eixos temáticos: Subjetividades e envelhecimento, Sexualidade e identidade de gênero, Violências e discriminações, Cuidados e instituições de longa permanência (ILPIs), Saúde, Cultura, lazer e ativismo político, Acesso à renda e empregabilidade e serviços públicos. Veja o relatório do estudo.
Diagnóstico
Envelhecer LGBT+ é um desdobramento da pesquisa Longeviver LGBT+: envelhecimento da população LGBT e diagnóstico sobre o longeviver e o acesso aos serviços públicos municipais. De acordo com a pesquisadora do Diverso UFMG Cyrana Veloso, uma das autoras do estudo, na primeira etapa de escuta da pesquisa foram alcançadas 114 pessoas idosas LGBT+, por meio de questionário on-line. As pessoas informaram perfil socioeconômico, raça, orientação sexual e identidade de gênero, violências e discriminações vivenciadas ao longo da vida e na velhice e acesso à moradia e saúde após os 60 anos. Na segunda fase, 75 pessoas idosas LGBT+ foram entrevistadas em profundidade, com base na metodologia de história de vida.
Lorena Paiva, mulher trans e conselheira municipal dos direitos das mulheres, mudou-se para a capital mineira aos 12 anos de idade, após ter sido expulsa da escola pública na qual estudava por LGBT+fobia. Nesta sexta-feira, dia 4, a conselheira completa 60 anos de idade, tornando-se oficialmente idosa por alcançar o marco considerado tanto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) quanto pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo Lorena, chegar à vida idosa é uma vitória e uma tristeza: “Pessoas trans, como eu, nos tornamos idosas a partir dos 40 anos, pois temos uma expectativa de vida menor. Completar 60 anos é uma alegria, uma sorte, mas uma tristeza porque a maioria de nós não consegue."
Apesar de também pertencer à população idosa LGBT+ de Belo Horizonte, o jornalista Zeca Perdigão reconhece as realidades distintas e os impactos de classe social, raça e etnia no preconceito sofrido. Perdigão se autodeclara um homem gay idoso e branco e considera-se privilegiado em relação à maioria das pessoas LGBT+, em geral negras e pobres, como atestado por levantamento do Diverso UFMG durante as últimas edições da Parada do Orgulho LGBT+ de BH.
“O preconceito existe, mas ser branco e de classe média me deu o privilégio de não ser afetado pelo preconceito, enquanto pessoas LGBT+ não brancas e em situação de vulnerabilidade são perseguidas e mortas. Eu tive o privilégio de não enfrentar ações hostis e de reagir ao presenciar outras pessoas mais vulneráveis enfrentando preconceitos", testemunha Perdigão.
Onde estão as pessoas idosas LGBT+
O mapeamento da população idosa LGBT+ de BH preenche uma lacuna identificada nos resultados de levantamento anual realizado pelo Diverso UFMG. “Aplicamos questionários na Parada do Orgulho LGBT+ de BH, e nos chamou a atenção o fato de que os frequentadores da parada são jovens, em sua maioria. As pessoas com 60 anos de idade ou mais praticamente não apareciam. Assim, a PBH identificou junto conosco a necessidade de mapear a população LGBT+ idosa. Se essa população não está na parada, onde ela estaria?”, detalha Cyrana.
Diante do desafio de mapear as pessoas idosas LGBT+ em BH, o Diverso percebeu que uma metodologia quantitativa não seria a mais adequada para abordar e garantir a participação do grupo de interesse. “Precisávamos fazer essa população ficar à vontade para conversar com a gente. Assim, optamos por uma pesquisa com metodologia de história de vida. Procuramos pessoas idosas LGBT+ que moravam na cidade de Belo Horizonte no momento da pesquisa, durante os últimos dois anos, e que se dispusessem a conversar e compartilhar a sua história conosco”, explica a pesquisadora.
O mapeamento também se valeu da metodologia de bola de neve, assim explicada por Cynara. “Uma pessoa conhece a pesquisa, gosta, participa e vai indicando outras pessoas do seu meio", diz. "Vimos o quanto era difícil fazer essa busca ativa. Não sabíamos onde elas estavam e quais espaços públicos de Belo Horizonte frequentavam”, justifica.
Sobre a ausência da população idosa LGBT+ da Parada de BH, Zeca Perdigão acredita que podem faltar ânimo e disposição para o percurso às pessoas idosas, que também precisam de um tempo maior de descanso que as mais jovens. Entretanto, ele afirma que a ausência de um número grande de pessoas idosas no evento não significa que elas não lutem por seus direitos: “Nós já lutamos muito e seguimos lutando, em especial, por meio das redes sociais. Conquistamos direitos que permitem aos jovens, hoje, lotar as ruas nas paradas, mas, no meu caso, falta saúde, aos 67 anos, para enfrentar a multidão”.
Subsídios para políticas
Segundo Cyrana Veloso, a complexidade e a profundidade do relatório possibilitarão ao poder público da capital mineira projetar ações específicas para a população idosa LGBT+. “Em geral, é uma população que não tem mais familiares vivos, que tem amigos e amigas que às vezes também são pessoas idosas LGBT+ e estão em situação delicada socioeconomicamente, com laços fracos, ficando o cuidado terceirizado ao Estado.”
Na avaliação de Cyrana, o estudo fornece à PBH dados para trabalhar questões nas áreas de segurança pública, saúde e cultura e de acolhimento da LGBT+. Lorena Paiva concorda com a pesquisadora: “A nossa principal demanda é por uma casa de acolhimento às pessoas idosas LGBT+. A maior parte da comunidade LGBT+, em especial o segmento trans, não consegue ter acesso a três refeições diárias, moradia e segurança, pois ao longo da vida o preconceito e a discriminação obstruíram o acesso ao estudo e ao emprego. O poder público precisa agir diante dessa triste realidade”, afirma.
A Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (SMASAC) informou que a capital mineira tem 24 Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI)'s, que recebem recursos da PBH, mas são gerenciadas por Organizações da Sociedade Civil, e uma república, custeada e operacionalizada pela PBH. Não há, no momento, nenhuma ILPI para a população idosa LGBT+. “A Prefeitura de Belo Horizonte reconhece a importância de um acolhimento qualificado e que atenda as especificidades da população LGBT, entendendo que é uma medida fundamental para a garantia de direitos desse público. A Prefeitura está empenhada em qualificar a rede e em acolher com dignidade e eficácia a população LGBT”, disse a Secretaria em comunicado.
Procurado, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), responsável por coordenações de iniciativas em todo o país para acolhimento à população LGBT, informou: “A Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do MDHC ainda não tem ações específicas. No momento, estamos realizando um mapeamento nacional de necessidades da população idosa LGBTQIA+”.
Denúncias
As denúncias de violências contra a pessoa idosa e também contra qualquer pessoa LGBT+ podem ser registradas por meio do Disque Denúncia (número 100), serviço do Ministério da Justiça. O Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) criminaliza qualquer ato que ponha em risco a saúde ou a vida da população idosa. Os crimes de ódio contra a população LGBT+ só foram tipificados no Brasil em 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela aplicação da Lei do Racismo (7.176/1989) para enquadrar crimes de homofobia e transfobia, até que o Congresso Nacional aprove legislação específica.
Produção intermídias
Esta reportagem foi produzida em formatos intermídias, pelo Centro de Comunicação (Cedecom) da UFMG. Para acompanhar a versão em áudio desta reportagem especial, basta reproduzir a matéria veiculada pela Rádio UFMG Educativa, a partir do player a seguir.
Além disso, uma versão em vídeo foi produzida pelo Núcleo de Redes Sociais do Cedecom e está disponível no perfil da Universidade no Instagram (@ufmg). Assista ao vídeo.
Ficha técnica
Captação audiovisual: Beatriz Campos
Edição de imagens: Bruno Ihara e Ruleandson do Carmo
Edição sonora: Clarice Oliveira
Edição de conteúdo: Alessandra Dantas e Breno Rodrigues
Produção e reportagem: Ruleandson do Carmo
Pessoas entrevistadas:
Cyrana Veloso, pesquisadora Diverso UFMG
Lorena Paiva, conselheira municipal dos Direitos das Mulheres
Zeca Perdigão, jornalista