Opinião

Que as brasas convertam-se em chamas de esperança

Ex-diretora escreve sobre o incêndio no Museu de História Natural e Jardim Botânico e o seu precioso acervo

Sala de triagem no Museu, onde o acervo resgatado é preparado para a reserva técnica provisória
Sala de triagem no Museu, onde o acervo resgatado é preparado para a reserva técnica provisória Rogério do Pateo / UFMG

O incêndio nas salas do acervo técnico do Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da UFMG, ocorrido na manhã do último dia 15, é uma forte representação simbólica do atual estágio da educação e da cultura brasileiras. O (des)governo Bolsonaro cortou as verbas para as universidades federais, exterminou programas de bolsas de iniciação e de pesquisa e agora ameaça a autonomia acadêmica. Seu desejo é acabar com a comunidade científica, com as pesquisas, com o ensino e com a extensão universitária.

Em meio à pandemia, instaurou-se o pandemônio. O acervo arquitetônico, histórico, arqueológico, paleontológico, antropológico, biológico é um patrimônio brasileiro, memória nacional, raízes de culturas genuínas e singulares. As salas da reserva técnica do Museu atingidas pelo fogo transformaram-se em escombros e cinzas. Restaram as paredes. Esses ambientes integravam uma edificação que remonta às primeiras quatro décadas do século passado, quando ali funcionava o Instituto Agronômico.  

Além da destruição desse imóvel histórico, certamente houve perdas importantes no acervo – esse prejuízo ainda está sendo avaliado. Felizmente, uma parte do acervo que estava em São Paulo e a outra em exposição no próprio Museu foram salvas. Recordo-me, ainda, que, durante minha gestão no Museu, o Herbário Melo Barreto, instalado naquelas salas, foi transferido, com o apoio do Departamento de Botânica, para o Herbário do ICB, que apresenta condições fitossanitárias adequadas e ambiente climatizado. Assim, essa importante coleção de exsicatas do princípio do século passado acabou preservada. 

Um acervo museológico dessa magnitude não se monta da noite para o dia. São anos de trabalho e coleta persistente e sistemática de pesquisadores e técnicos que vivem atualmente com minguados orçamentos de pesquisa.

Observando de longe, não tenho uma dimensão precisa do material perdido, mas posso afirmar que, naquela sala técnica, estavam guardadas algumas preciosidades. Destaco, por exemplo, os artefatos arqueológicos de mais de 12 mil anos, as coleções entomológicas das décadas de 1930 e 40, exemplares de arte plumária e as cerâmicas do Vale do Jequitinhonha, impregnadas de saberes milenares da cultura indígena. 

Outro ponto alto é a coleção Harold Walter, doada pela família do cônsul inglês à UFMG. Ela reúne, provavelmente, o maior acervo do Homem de Lagoa Santa, com 38 crânios. Essa raridade é resultado de trabalho primoroso dos pesquisadores Aníbal Mattos, Arnaldo Artoud e Harold Walter realizado nas décadas de 30, 40 e 50 do século 20. Os primeiros exemplares biológicos do Museu foram doados pelo professor Amílcar Vianna Martins e pelo antigo funcionário e colecionador do Instituto Agronômico Moacyr Castilho, amante das ciências naturais. Grande parte da coleção entomológica veio transferida da antiga Faculdade de Filosofia, onde funcionava inicialmente o curso de História Natural. Essa coleção preservada e guardada em armários especiais de pinho de riga, uma madeira de lei, destacava-se pela diversidade e beleza.

Um acervo museológico dessa magnitude não se monta da noite para o dia. São anos de trabalho e coleta persistente e sistemática de pesquisadores e técnicos que vivem atualmente com minguados orçamentos de pesquisa. Em questão de minutos, as línguas de fogo podem lamber a história e o conhecimento para sempre.

Fácil é destruir, matar, desmatar e queimar. Difícil é o processo de construção, e lento, o de conhecer. Fácil é rotular as universidades de antro de comunistas, de balbúrdia. Difícil é não se acomodar e fazer com coragem uma gestão universitária com recursos insuficientes para manter uma infraestrutura minimamente funcional – e às vezes nem isso.

Do fogo restaram brasas. Como disse o poeta, o amor é um fogo que arde sem se ver. Que o amor ao conhecimento e ao saber nos acalente e se transforme em novas chamas. Que a memória das tragédias do Museu Nacional, do Museu da Língua Portuguesa e do Museu de História Natural nos fortaleça para novas batalhas.

Mônica Meyer / diretora do MHNJB no período de 1999 a 2005