Universidade: projeto e instituição do Estado
Em artigo, presidente da Andifes ressalta caráter 'singularíssimo' da instituição, que busca a verdade, faz ciência, é política, artística e acolhe a desordem de emoções
As universidades públicas brasileiras enfrentam hoje múltiplas ameaças. Porém, em meio à diversidade de sua instalação, o que nelas ultrapassa o imediato de ameaças e escassez de recursos? O que nelas conforma uma unidade para além das mais flagrantes diferenças? Com efeito, cada universidade, se capaz de reflexão, se madura para ser autônoma, é singular.
Cada universidade é a tradução local de algumas tensões universais, às quais confere uma cor própria em seu contexto concreto. Se universidades são autênticos projetos de Estado e da sociedade, não estão em crise em virtude de alguma eventual circunstância arbitrária. Em questão, sim, encontra-se o Estado, na medida em que podemos indagar se está à altura de uma aposta tão elevada. Que aposta elevada seria essa? Retomo aqui uma descrição elaborada por equipe coordenada por Pierre Bourdieu, que já citei mais de uma vez para destacar-lhe a singularidade, mas que submeto a uma leitura, não exatamente talmúdica, mas bem mais detida.
A universidade é um lugar, talvez o único lugar de confrontação crítica entre as gerações, um lugar de experiências múltiplas, afetivas, políticas, artísticas, por completo insubstituíveis (…); lugar de concorrência entre saberes, de seu colocar-se em questão, e portanto, forma insubstituível de espírito crítico e cívico, de espírito cívico-crítico, lugar que viria a desaparecer atrofiando toda reflexão geral, aquela capaz de ultrapassar os limites das especializações disciplinares e das competências economicamente funcionais (…). [1]
Primeiro, a universidade é um lugar, está em um lugar, diferencia-se por ser um lugar em oposição a outros. Não se instala, pois, em um espaço abstrato, como se fossem escritórios em etéreos vales do silício, como se abríssemos uma janela para alcançar demandas e alimentos para nossas soluções. Ela (re)organiza relações entre pessoas, classes e instituições em uma região específica. Compromete os valores locais ao trazer saberes e interesses estranhos, sem ignorar o vocabulário, a frase, o texto de onde acaso se estabelece.
Segundo, não é um lugar qualquer. É singular por ser o lugar (talvez o único) de confrontação entre gerações, ou seja, ela torna presente em um espaço, por colaboração, o que talvez se dissolvesse no tempo por substituição. E as gerações não estão umas para as outras por meio de simples contiguidade, como pais ao dialogarem com seus filhos, mas por diferenças sistemáticas, plasmadas por vezes em oposições epistêmicas de séculos ou conflitos intransponíveis de interesses.
Terceiro, as experiências são múltiplas e, logo, jamais seriam apenas racionais. Não podem ser medidas pela simples eficácia, nem melhoradas por algum adestramento ou disciplina. Elas são afetivas, políticas, artísticas, como a buscar o conflito, o atrito, a arte, ao mesmo tempo que buscam a verdade e fazem ciência. Eis que, ao lado da ordem de razões, a universidade também acolhe a desordem de emoções, faz boa balbúrdia, pela qual a repetição associa sua comunidade a gestos futuros e não à reiteração do mesmo.
Quarto, é lugar de concorrência entre saberes. Com isso, não se esgarça apenas no tempo, mas permite-se fazer dialogar saberes que, nesse diálogo, transforma, pois recusa tornar o saber mera técnica. É, pois, o espaço onde convivem matrizes de pensamento conflitantes, que, surpreendentemente, colaboram, participando de uma reflexão geral.
Quinto, por ser capaz de reflexão, por não ser a expressão partidária de uma competência, de uma técnica, é um espaço que se organiza como lugar de esclarecimento, ou seja, não apenas um repositório de verdades, mas, sim, de conhecimento, uma vez que só podem ser considerados esclarecidos os que são capazes de pôr seu próprio saber em questão.
Sexto, é então o lugar de um espírito crítico e cívico. Não simplesmente de confronto, mas de preeminência da palavra sobre outros instrumentos de poder, inclusive pelo fato de a dimensão crítica coroar-se em compromisso cívico, ou seja, um compromisso também coletivo, com o outro, com o comum, com valores, enfim, que ultrapassam os interesses particulares. Por isso, reitera o texto, um espírito cívico crítico.
Sétimo, uma vez capaz de reflexão crítica e determinada por um interesse coletivo, a universidade é lugar que não se governa de fora e, logo, deve perfazer-se por uma autonomia, não sendo uma mera repartição pública nem uma empresa. Em um lugar assim, as decisões administrativas não se descolam da finalidade de propósitos, que é também medida em resultados (titulação de pessoas, produtos de pesquisa, objetos inovadores), sem nunca se esgotar neles.
A universidade é, portanto, uma aposta comum de Estado e sociedade em um modelo singularíssimo, porquanto se encontra inteiramente colada a eles, sendo deles, contudo, por completo independente. Comprometida com o Estado e com os interesses de longo prazo da sociedade, não é projeto de governos, partidos ou sindicatos. Por isso mesmo, é esse “lugar que viria a desaparecer atrofiando toda reflexão geral, aquela capaz de ultrapassar os limites das especializações disciplinares e das competências economicamente funcionais”.
Se a universidade é um projeto de Estado, importa que ela não tenha um modelo único. Ela não é um pacote que se despeja nesse ou naquele lugar. Uma instituição assim, com identidade já bem definida, teria antes o desenho previsível de uma linha de montagem. Ou estaria adormecida e entorpecida no tempo, tão só feliz por sua inércia, satisfeita com a ausência de qualquer surpresa. Um projeto assim celebraria com Hegel:
“A maior sorte de um estabelecimento é não ter história, apenas duração”. [2]
Ora, se projeto de Estado, o destino da universidade é ter história, e não apenas duração. E ter história é não se fixar em um modelo único; sobretudo, é recusar qualquer unilateralidade. Aqui, cabe recusar tanto a unilateralidade de um projeto destinado a “universidades inovadoras e empreendedoras”, quanto projetos que se formulassem como destinados a “universidades extensionistas”, ou “universidades de ensino” ou, enfim, “universidades de pesquisa”.
Muitos, com boas razões, fixam os olhos na ideia de uma universidade de pesquisa, de sorte que já teríamos chegado a uma definição plena do melhor modelo ao início do século XIX — o modelo de Humboldt, universalizável, sim, mas também específico de um tempo e de demandas próprias da então frágil nação alemã. Nesse caso mais favorável, porém, após ponderações pragmáticas, os defensores desse modelo se veem obrigados a concluir que tal biscoito fino não poderia alimentar toda a massa demandante de ensino superior. E, com isso, fazem da necessidade virtude, esquecendo que fazer da necessidade virtude é exatamente a medida limitada dos governos, e não do estado.
Fichte, o primeiro reitor da Universidade de Berlim, foi bem mais sutil. Em vez de um modelo, legou-nos a ideia de universidades como instituições que, por sua natureza, se obrigam a justificar seu direito à existência. E aqui o movimento é de mão dupla. Tanto as universidades devem procurar suas razões específicas perante uma sociedade, de modo que não renunciem à multiplicidade constitutiva de saberes e de relações com os saberes (aquilo que nossa Constituição afirma como laço indissolúvel entre ensino, pesquisa e extensão), quanto também, por sua feita, a sociedade e o Estado passam a medir a magnitude e a elevação de seu projeto também por sua disposição para apostar em filhos assim, ousados e incontroláveis.
[1] ARESER – Association de réflexion sur les enseignements supérieurs et la recherche, Quelques diagnostics et remèdes urgents pour une université en péril, Paris, Raisons d’Agir, 1997, p. 120-121.
[2] HEGEL, G. W. F., Discursos sobre Educação, Lisboa, Colibri, 1994, p. 71.