Arte e Cultura

Mulheres descrevem lutas e reivindicam reconhecimento à cultura preta

Roda de conversa do Novembro Negro reuniu lideranças quilombolas e ativista antirracista

Sônia Abike Ribeiro, socióloga formada pela Universidade Federal  do Vale do Rio dos Sinos, o professor César Guimarães, do Departamento de Comunicação Social, Daniely Reis, diretora de Políticas de Ações Afirmativas da Prae, e as mestras quilombolas Makota Kidoiale e Maria Luiza Marcelino
Sônia Abike Ribeiro, César Guimarães, Daniely Fleury, diretora de Políticas de Ações Afirmativas da Prae, e as mestras quilombolas Makota Kidoiale e Maria Luiza Marcelino Reprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

“A universidade precisa conhecer os nossos escritos, valorizar as nossas oralidades, que são linguagens tão importantes, promover sentido às nossas vozes”, defendeu Sônia Abike Ribeiro, uma das convidadas da mesa-redonda As lutas das mulheres quilombolas, organizada pela Formação Transversal em Saberes Tradicionais, na tarde desta sexta-feira, 26 de novembro.

A atividade, que integrou a programação do Novembro Negro, também reuniu as mestras quilombolas Makota Kidoiale, criadora do Projeto Eduka Kilombu e autora do livro Manzo: ventos fortes de um kilombo (2017), e Maria Luiza Marcelino, autora de Quilombola: lamento de um povo negro (2015) e zeladora do Centro Espírita Caboclo Pena Branca. O evento, mediado pelo professor César Guimarães, do Departamento de Comunicação Social da UFMG, foi transmitido pela plataforma YouTube

'Palmares é o nosso cimento ancestral organizativo'
Militante da causa antirracista, socióloga formada pela Universidade Federal do Vale dos Sinos e mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal do Vale do Rio São Francisco, Sônia Ribeiro destacou a relevância das mulheres negras na participação e construção dos saberes ancestrais. “Esse conhecimento é das mulheres que alimentaram, cuidaram, escutaram, pautaram e constituíram uma perspectiva organizativa, para que pudéssemos continuar seguindo e sobrevivendo na sociedade contemporânea”, afirmou.

A socióloga também falou sobre as origens do Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), criado no estado do Rio Grande do Sul, no início da década de 1970, que representa a mobilização histórica da população preta na sociedade brasileira. Segundo Sônia, até aquele momento, a data que simbolizava a luta dos povos negros, de acordo com a historiografia oficial, era o 13 de maio, dia em que foi abolida a escravatura, em 1888.

Entretanto, o movimento negro, ao “olhar para trás e compreender as existências do passado”, escolheu o dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, como o símbolo da resistência dos negros no Brasil. “Palmares é o nosso local e cimento ancestral organizativo, que sustenta a nossa luta no contexto social do país. Ele é o nosso primeiro espaço de aquilombamento”, explicou Sônia Abike Ribeiro. 

A ativista também falou sobre a invisibilidade da história da população negra e do pacto social que é responsável pela manutenção do poder da branquitude. “Nós precisamos retomar as agendas pretas, as nossas histórias e organizações, que foram destruídas e aculturadas pelo colonialismo”, assegurou. Ela defendeu que, para isso, a cultura precisa estar presente nas escolas – é uma forma de contribuir na luta contra o racismo estrutural. “Não podemos mais nos orientar pela história de quem nos colonizou”, completou. 

Sônia Ribeiro: "Nossa história não pode ser consultada somente no Novembro NegroReprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG


'Pagamos um preço muito alto para sobreviver'
Maria Luiza Marcelino discorreu sobre o apagamento dos saberes tradicionais da população preta. “A sociedade diz que a educação é um dever, mas estão excluindo a nossa cultura. Não podem querer mudar a nossa fala, a nossa compreensão e o nosso entendimento. Querem alterar o nosso cabelo, o nosso jeito de ser, e exigem a nossa concordância. Isso não deve ser aplicado apenas no ambiente escolar, mas na lei. Temos que ser respeitados”, enfatizou.

A mestra quilombola afirmou que a história dos diferentes povos precisa ser reconhecida. "Pagamos um preço muito alto para sobreviver; por isso, temos que contar as nossas memórias, não podemos deixar o sistema apagá-las." 

Ainda de acordo com Marcelino, os quilombolas vivem sob o descaso das autoridades governamentais, visto que são ameaçados constantemente de perder seus territórios. “Querem exterminar as nossas vidas. Nós queremos apenas o direito à vida e à moradia. A terra é uma forma de sobrevivermos, com ela conseguimos nos organizar, e dela tiramos o nosso sustento”, declarou. 

A mestra Maria Luiza Marcelino é uma das principais lideranças do Quilombo Namastê (Ubá, MG)
A mestra Maria Luiza Marcelino é uma das principais lideranças do Quilombo Namastê, em Ubá (MG)Saberes Tradicionais | UFMG

'Não podemos continuar alimentando o pacto que nos extermina
Em sua fala, Makota Kidoiale também denunciou a falta de assistência do Estado aos quilombos. “A territorialidade não é respeitada. Desde a abolição, nos tiraram toda a condição de moradia, e, até os dias atuais, as mulheres pretas travam uma luta cotidiana para garantir o direito à casa”, afirmou. 

Ela explicou que o problema não foi resolvido pela Constituição de 1988, pois a lei alega que os espaços ocupados pelos quilombos são irregulares, mesmo que esses territórios estejam estabelecidos há muitos anos. “Dizem que os nossos terrenos são irregulares e as nossas casas são espaços invadidos. Assim, diariamente vivenciamos um processo muito violento e perverso”, completou. 

Ainda sobre a Constituição, a criadora do Projeto Educa Kilombu afirmou que a população preta não foi incluída e reconhecida como parte da sociedade, já que as leis estabelecidas não a favorecem. “Quando constituíram o país, as autoridades não integraram o povo preto. Não nos sentimos parte desse pacto, pois nenhuma organização criada por eles dialoga com a nossa”, explicou.

Segundo Kidoiale, a sociedade busca, por meio do pacto social hegemônico, adestrar o povo preto, para que ele possa permanecer em condições subalternas. “Nós queremos compartilhar não somente com os nossos, mas também com aqueles que estão nos violentando. Precisamos humanizar essa sociedade, devolver a ela o sentido de ser humano. Não podemos continuar alimentando esse pacto que extermina as pessoas pretas”, disse. 

Makota Kidoiale é coordenadora o curso
Makota Kidoiale coordena curso oferecido no âmbito da Formação Transversal em Saberes Tradicionais Reprodução de tela: Raphaella Dias | UFMG

A autora do livro Manzo: ventos fortes de um kilombo (2017) defendeu a ampliação do debate a fim de construir um novo pacto e disse que atribui à Formação Transversal em Saberes Tradicionais um papel fundamental nesse processo. "É uma política de ação afirmativa de enfrentamento ao racismo e de reconhecimento da história do Brasil", destacou. 

Saberes Tradicionais

O Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais foi formalmente instituído na UFMG em 2015, pela Pró-reitoria de Graduação (Prograd). A iniciativa é inspirada na proposta do Encontro de Saberes, vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCTI) de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, sediado na Universidade de Brasília (UnB). 

Com 360 horas-aula, a formação mantém oferta semestral regular de disciplinas, que são abertas para estudantes de todos os cursos de graduação. O programa já ofereceu 14 disciplinas com a colaboração de 36 mestres e mestras e 22 aprendizes das mais diferentes culturas e regiões do país, e de 26 professores e professoras parceiros com formação em diversas áreas.

Ana Magalhães