Coberturas especiais

'Não verei a colheita, mas faço questão de morrer como semente', diz Frei Betto

Escritor e frade dominicano falou, nesta sexta-feira, no ciclo de conferências que comemora os 95 anos da UFMG e formalizou doação de seu acervo intelectual

Vice-reitor Alessandro Fernandes de Moreira assina a formalização da doação, ao lado de Helen de Medeiros e de Frei Betto
Vice-reitor Alessandro Fernandes Moreira assina o protocolo de intenções que visa à formalização da doação do acervo de Frei Betto (à direita); no centro, a professora Elen de Medeiros, do AEMFoca Lisboa | UFMG

Um dia após seu aniversário de 78 anos, celebrado ontem, 25 de agosto, o escritor, jornalista e frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, formalizou a doação de seu acervo intelectual ao Centro de Estudos Literários e Culturais da UFMG, abrigado no Acervo de Escritores Mineiros (AEM), sediado na Biblioteca Central da Universidade.

Antes de proferir a palestra A luta pela democracia, na qual fez uma retrospectiva de sua militância, especialmente por meio dos movimentos estudantis e das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), Frei Betto reafirmou seu orgulho em ter sua produção acolhida pelo Acervo, ao lado das obras de sua mãe, Maria Stella Libânio Christo, autora de livros clássicos da culinária mineira.

A palestra de Frei Betto, proferida nesta sexta-feira, no auditório da Reitoria, está disponível no canal da UFMG no YouTube e integra o ciclo de conferências Futuro, essa palavra, que faz parte da programação comemorativa dos 95 anos da UFMG e já recebeu Ailton KrenakDavi Kopenawa YanomamiAna Lúcia Gazzola e Heloísa Starling.  

Participaram da assinatura do protocolo de cessão do acervo o vice-reitor Alessandro Fernandes Moreira, a diretora da Faculdade de Letras, Sueli Maria Coelho, a coordenadora do Acervo de Escritores Mineiros, professora Elen de Medeiros, e o ex-coordenador do AEM, professor Reinaldo Marques. 

Cristo e Marx
“Meu sonho sempre foi o de conciliar a fé cristã, herdada da minha mãe, com o método marxista. Precisamos defender não somente uma democracia política, mas também uma democracia econômica para termos um país sem miseráveis, sem opressão, sem pessoas morando nas ruas. Um lugar onde todos tenham acesso aos bens para uma vida digna e feliz. Sei que esse é um sonho do qual não verei a colheita, mas faço questão de morrer como semente”, afirmou.

“Iniciei minha militância aos 13 anos, e minha entrada na JEC [Juventude Estudantil Católica de BH] foi a maior benção da minha vida. Atuávamos nos movimentos populares, sob a influência dos dominicanos, que foram resistentes à ocupação nazista na França, ao lado de militantes do partido comunista francês. Isso abriu nossa cabeça para que tivéssemos outra ótica ideológica, o que marcou a trajetória dos movimentos populares no Brasil, no trabalho com os indígenas, estudantes e pobres. Eu peguei essa fase, e nela me encontro até hoje”, relatou.  

Ao falar dos indígenas, Frei Betto discorreu sobre suas obras mais recentes que tratam dessa temática. Uma delas é infantojuvenil e aborda, segundo ele, "um dos equívocos da nossa historiografia, que é a chegada dos portugueses ao território como se fosse a descoberta do Brasil". O outro livro, ele contou, é fruto do trabalho dos últimos cinco anos e sai em momento que coincide com o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. "Tom vermelho do verde é uma obra romanceada, que revela, por meio de muita pesquisa, como os indígenas, especialmente os Waimiri-Atroari, foram trucidados pela ditadura, por ocasião da abertura da Transamazônica, que rasgou a Amazônia do Nordeste ao Peru.”

Tom vermelho de verde acaba se ser lançado, após cinco anos de pesquisa
Frei Betto com exemplar de 'Tom vermelho do verde', lançado após cinco anos de pesquisa Foca Lisboa | UFMG

Frei Betto também recordou que, aos 16 anos, foi eleito vice-presidente da União Municipal de Estudantes Secundaristas de Belo Horizonte, ao lado do então presidente, Tomaz Aroldo da Mota Santos (1944-2020), que se tornaria professor e reitor da UFMG (1994-1998). “Juntos conseguimos mobilizar a juventude para a retirada do pessoal da direita das UNEs. Mas, em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, enfrentei, pela primeira vez, na Praça Sete, a cavalaria do Exército, que reprimiu a manifestação de estudantes pela volta da democracia”.

Antes disso, o jovem Carlos Alberto, no aniversário de 10 anos, em 25 de agosto de 1954, vivenciou outro fato que marcaria sua trajetória na luta pela democracia. “Meu pai sentiu que Getúlio Vargas seria derrubado pelos militares da Aeronáutica e ficou ao telefone convocando familiares e amigos para celebrar a derrubada da ditadura e marcar o aniversário do filho. Mas a notícia do suicídio de Vargas acabou com o clima da festa", recordou.

Democracia e educação política
“Na minha concepção, o que vivemos no Brasil é um arremedo de democracia. A República veio por meio de um golpe, porque a elite tem o poder de manipular. Por isso, dizemos que chegamos ao governo, mas não ao poder. O sistema capitalista realmente fracassou. Temos 8 bilhões de pessoas no mundo, das quais mais da metade tem a vida ameaçada pela fome, 1 bilhão de famintos crônicos e mais de 3 bilhões vivendo exclusivamente na esfera da necessidade, para garantir a própria sobrevivência, sem acesso à esfera da gratuidade, que é a cultura, o lazer, o esporte e o tempo livre para festejar com a família", afirmou.

Para o frade dominicano, que é também consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), “se o capitalismo deu certo, foi para meia dúzia de ultramilionários que controlam o planeta”.

Frei Betto conclamou os estudantes e professores a recordar a força dos movimentos estudantis pela democracia no Brasil. Segundo ele, os movimentos da juventude, somados à criação dos centros de educação popular, das Comunidades Eclesiais de Base e, mais tarde, à organização dos sindicatos, às reformulações partidárias e ao surgimento dos  movimentos sociais, minaram as bases da ditadura. “Esse processo ainda não resultou no amadurecimento da democracia no país, porque faltam as reformas estruturais, como a agrária, a tributária e habitacional. Por isso, precisamos lutar pela educação política, sem ela não há democracia. A educação política consegue dizer à subjetividade, assim como o discurso capitalista consegue fazer as pessoas acreditarem que a riqueza é fruto da meritocracia”.

Prisioneiro político
Frei Betto relembrou ainda, com senso de humor, as duas vezes em que foi preso pela ditadura militar: “Em junho de 1964, fui preso pelo serviço secreto da Marinha ao ser confundido com o Betinho [o sociólogo Herbert de Souza]. Fiquei lá por 15 dias, sendo torturado, até que se convenceram que eu não era ele”.

E continuou: “como dominicano, ingressei, com outros oito frades, na resistência à ditadura, formamos uma rede de apoio para esconder pessoas, ajudar na saída do país, cuidar de feridos. Nunca pegamos em armas, e nossos superiores sabiam da nossa atividade. Mas, quando fui preso novamente, em 1969, eu e outros dois frades fomos encaminhados para penitenciárias comuns, onde ficamos juntos com a bandidagem mais pesada. A gente tinha muito medo deles. Mas, para nossa sorte, eles também tinham medo de nós. Acreditavam que a gente era terrorista”.

A amizade com Paulo Freire também marcou a trajetória do frade, que decidiu ficar no Brasil, mesmo com a pressão dos familiares, amigos e da Igreja, após sua saída da prisão, em 1973. Segundo ele, “a luta precisava continuar aqui, especialmente ao lado dos movimentos populares, que se fortaleceram graças ao método Paulo Freire”. Foi quando decidiu morar numa favela, em Vitória, capital do Espírito Santo, e continuar a militância em defesa dos pobres.

Frei Betto também respondeu às perguntas dos participantes. Ele discorreu, por exemplo, sobre a proposta do Papa Francisco, denominada de "Economia de Francisco e Clara" como "oposição ao sistema capitalista”. Sobre esse tema, o escritor também acaba de lançar Jesus militante. "Falo desse Jesus que veio trazer um novo projeto civilizatório, o Reino de Deus, onde há amor e partilha dos bens". E finalizou: "também é necessário aprendermos com a sofisticada cultura indígena e respeitar as distintas culturas, porque elas socialmente se complementam".

      

Teresa Sanches