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Para Eneida Maria de Souza, um poema como rito de passagem e celebração

Rafael Lovisi Prado homenageia a professora emérita, que morreu no dia 1º de março

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Eneida Maria de Souza e Rafael Lovisi: orientação e parceriaAcervo de Rafael Lovisi

“O poema como um rito de celebração, de passagem e luto. Esses são alguns dos gestos atemporais da poesia”, diz o poeta e professor Rafael Lovisi Prado sobre sua homenagem a Eneida Maria de Souza, professora emérita da Faculdade de Letras, que morreu no dia 1º de março. Eneida e Rafael tiveram longa relação de orientadora e orientando e, recentemente, ministraram em parceria dois seminários de Literatura Comparada no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UFMG: Arte, política e cultura popular, em 2019, e Crítica biográfica: ensaio, ficção, iconografia, em 2018 – os últimos em que a professora Eneida atuou. Segundo Rafael Lovisi, “inspirado numa experiência de afeto, amizade e aprendizagem cultivada ao longo dos últimos dez anos, o poema é também um olhar particular sobre a mulher e sua obra”. 

Eneida

Rafael Lovisi Prado* 

Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer (Jorge de Sena)

A noite abriu uma janela indiscreta
não se pode fechar as bandas a bater
fora dentro forte pela fresta vê-se avançar
o cortejo oculto quase mudo arquivo
Minasmundo Pan-américas em moção
figurantes operários ambulantes
bonequeiros balangandãs junto
a Carmens & Mários & Navas & tantos
outros comuns na avenida altiva toda prosa
moderna em Paris ou Belô Ela dirige desfile
alegorias impuras retratos pintados fotografias
de populares à margem acertando a Babel
aos ponteiros naquele relógio colorido
cabelos curtos colares
brincos e batom

Um turista nem tão aprendiz pergunta
onde vão tantas figuras do íntimo?
Era terça nem samba nem rumba
na nossa terra - desde quarta, só cinzas

Muiraquitã-Manhuaçu pedra mágica seu discurso
ativa preguiça primordial, alegria antropofágica
saber os muitos jeitos do Brasil, espaço em risco
sempre errante o exercício memorial
cuja vocação como palavra é
fábula fagulha falhar
tal tic-tac
estelar

Século de Borges que é seu corpo imóvel
real para o qual não há metáforas mesmo
após duas horas na Casa Rosada a morte
continua coisa imaginada mal de origem
pois não há fim de jogo fim das ilusões
nessa nossa conversa de compadres
sobre a mesa correspondências
sondar se afinal literatura
é vida verossímil
ou avesso

A noite abriu páginas no livro à cabeceira
lê-se: amor, cacto macerado pelas mãos
fio de fumo acima das paisagens de areia.

Uma penúltima libação feita com whisky
antes de aportar a barca dos homens
e ensurdecedoras soarem as asas dos Anjos:
a verdade está na Rua Benvinda de Carvalho  

*Rafael Lovisi Prado é doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG e, atualmente, professor de Literatura Brasileira no Cefet-MG