'Sem confiança, não há democracia', diz Cármen Lúcia
Ministra falou dos desafios impostos pelas novas tecnologias da informação e defendeu a responsabilização das plataformas de mídia em conferência do programa de formação cidadã da UFMG
A ditadura militar no Brasil privou as vítimas de acesso à informação para que não pudessem fazer escolhas. E hoje, com as novas tecnologias e as fake news, a desinformação tornou-se um novo cativeiro e está levando o ser humano ao pior dos mundos – à perda da capacidade de pensar e à desumanização. Para a ministra do Supremo Tribunal Federal e presidente do Supremo Tribunal Eleitoral, Cármen Lúcia, não existe democracia sem informação baseada na verdade dos fatos. A ministra discorreu sobre o assunto em conferência na manhã desta segunda-feira, 4, no auditório da Reitoria, a convite do Programa de Formação Cidadã em Defesa da Democracia da UFMG.
Para um auditório lotado de estudantes, servidores docentes e técnico-administrativos, além dos gestores da Universidade e representantes do Judiciário mineiro, a ministra reiterou a importância da confiabilidade das instituições e do acesso à informação para o fortalecimento da democracia. Ela criticou o uso do termo "fake news" em vez de "mentira", que, na sua avaliação, “parece um dispositivo para suavizar a dimensão das suas consequências danosas".
Cármen Lúcia destacou o acesso à informação como direito fundamental previsto na Constituição de 1988, que significa direito à toda forma de conhecimento. “A pessoa com informação tem poder porque a informação lhes dá direito de escolha. E como disseram e escreveram Paulo Freire e Hanna Arendt, essa escolha que faz sair da liberdade passiva, inocente, para a ativa, para transitar do individual para o político. Essa liberdade que nos permite partilhar, dialogar, transformar a realidade”, defendeu.
Intensivista de UTI
A ministra chamou de quatro “V" os desafios trazidos pelas novas tecnologias digitais da informação e comunicação – volume, velocidade, viralidade e verossimilhança. “A neurociência já comprovou que o cérebro humano não dá conta de pensar e refletir sobre esse grande volume de informações que recebe diariamente e com essa velocidade. E a viralidade é o mal que isso provoca em nossa mente e corpo, como se fosse um vírus. Além disso, a verossimilhança produzida pela inteligência artificial, que dificulta a distinção do que é fato, de fita ou fake são desafiadores”, pontuou.
Para a presidente do STE, as eleições municipais deste ano refletiram essa preocupação. “Eu me senti uma intensivista de UTI para garantir que 156 milhões de brasileiros habilitados a votar pudessem ir às urnas e escolher, livremente, quem gostariam que governasse sua cidade. Foram 5.569 municípios, ou seja, 5.569 eleições simultâneas, no mesmo dia, ao mesmo tempo”, relatou.
“No período da ditadura existia o seguinte mote: se você pensa que pensa, pensa mal. Quem pensa por você é o comitê central. E hoje podemos dizer que, quem pensa por você é o comercial. Os algoritmos não são inofensivos. Eles têm intenção, têm donos e visam lucros. Rui Barbosa elencou 83 sinônimos para mentira, e eu me atualizei de que já são 93. Mas para a verdade só tem uma palavra, o fato apresentado. E é por isso que precisamos resgatar a confiança e compromisso das pessoas umas com as outras e nas instituições. Sem confiança não há democracia”, reforçou a ministra.
O uso das novas tecnologias também foram defendidos por Cármen Lúcia como facilitadores do acesso à informação e esclarecimento de fatos. Ela citou o programa Bem na foto, utilizado pelo TSE neste ano para candidatos validarem dados do registro de candidatura que foram para a urna eletrônica. E também destacou a regulação das plataformas de mídias sociais como medidas efetivas para combater a desinformação.
Compartilhar responsabilidades
“Quando eu disse às plataformas que o comerciante de qualquer produto estragado tem que responder pelo dano causado ao cliente e não somente o fabricante do produto, deixei claro que a responsabilidade pelas mentiras e desinformação disseminadas nas mídias também são de responsabilidade delas e não somente dos autores. Não há como permitir que as pessoas confundam liberdade de expressão com desinformação. Por acaso as leis de regulação do trânsito impedem o direito das pessoas de locomoção? E mais do que regulação, estamos falando de Estado de direito democrático. As leis brasileiras existem e precisam ser cumpridas", reiterou.
“Nosso desafio é chegar de forma prudente, eficiente e permanente na luta pelas liberdades com responsabilidade. Não é possível termos liberdade sem confiar nas pessoas. Precisamos repensar a construção de uma sociedade mais humana. Precisamos uns dos outros, não fazemos nada sozinhos”, concluiu a ministra.
Na abertura da conferência, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida fez uma apresentação da ministra Cármen Lúcia, recordando sua passagem pela Universidade como ex-aluna do mestrado e homenageada com a medalha de honra em 2017, por ocasião dos 90 anos da UFMG. “É uma defensora da Constituição e do papel transformador do voto", disse a reitora.
Jornada
Na próxima quarta-feira, 6, o Programa de Formação Cidadã em Defesa da Democracia receberá o professor da Escola de Jornalismo, Mídia e Comunicação da Universidade de Sheffield (Inglaterra), Dani Madrid-Morales, que dirige na instituição o Disinformation Research Cluster. Ele pesquisa comunicação política global com foco em desinformação no Sul Global. A conferência de Madrid-Morales integra a 1ª Jornada Internacional da Rede de Estudos sobre Democracia e Desinformação (Redd), vinculada ao Instituto de Estudos Transdisciplinares (IEAT) da UFMG e ao Programa UFMG de Formação Cidadã em Defesa da Democracia.